Sidney Silveira
“Penso, logo sou” (Cogito, ergo SUM). É com este o juízo que Descartes pensa reconstruir todo o edifício filosófico do ocidente, após brindar-nos com o que ele julga ser uma dúvida universal transformada em método. Veremos, mais à frente — pelo escrutínio feito por um bisturi dialético — se o Cogito cartesiano tem alguma chance de salvar-se como juízo válido. Antes disso, contudo, analisemos algumas das suas premissas, e não com a nossa modesta opinião, mas partindo do que o próprio filósofo francês consignou em seus textos. E isto sem deixar de assinalar que, em filosofia, as premissas de um sistema importam tanto ou mais do que as conclusões, pois a força de qualquer doutrina filosófica não se mede por suas afirmações expressas (dado que todas as têm!), e sim pelo que se supõe ser o seu edifício lógico, a sua estrutura interna, a sua capacidade de alcançar validez medindo forças com as teorias contrárias, com as genuínas objeções.
A dúvida universal
Como toda a filosofia anterior não lhe parecera segura, Descartes — que sem conhecer minimamente a escolástica considerava-a “dogmática" — anuncia ser necessário recomeçar tudo a partir de idéias claras e distintas, de um ponto por assim dizer arquimédico no qual o edifício filosófico, enfim, encontrasse o seu fundamento. A isto ele foi “inspirado” por três sonhos* (o que é verdadeiramente emblemático, para uma filosofia idealista), e, a partir desta famosa jornada onírica, o pensador francês acreditou-se um iluminado, um escolhido para mudar os destinos da filosofia.
A mathesis universalis de Descartes parte da certeza de que os nossos conhecimentos são duvidosos (menos, é claro, o conhecimento pressuposto neste juízo, do qual ele tem toda a certeza, o que põe a nu a petitio principiis). E duvidosos a começar pelos dados que nos fornecem os sentidos e a imaginação*, os quais, para o cartesiano, são totalmente enganosos. É preciso, portanto, encontrar algo sólido, um critério seguro que nos permita discernir o verdadeiro do falso. E ele supõe encontrá-lo na dúvida “universal” a partir da qual chega à certeza de que pensa, e tal certeza lhe trará outra: a de que é — ou seja, a de que existe. "Penso, logo sou (existo)".
Pergunta-se Octavio Derisi em seu para muitos embaraçoso Filosofía Moderna y Filosofía Tomista: é possível semelhante “dúvida universal”? De cara, registre-se que a simples postulação da dúvida “universal” mostra o total desconhecimento de Descartes da resolução que deram ao mesmo problema — e partindo de um ponto muitíssimo mais profundo e seguro — Aristóteles, na Metafísica, e Santo Tomás, em seu Comentário à Metafísica, III, lec. I, que não cabe expor aqui em detalhes, para não mudar de assunto. Por favor, procurem os textos e os leiam com atenção.
A resposta decisiva é “não”! Não é possível tal dúvida. E as razões são muito simples, como diz o mesmo Derisi. A primeira é que a dúvida, como todo pensamento, deriva do objeto que significa (no caso, os conhecimentos [dubitáveis] que temos acerca das coisas), e não de si mesma. Uma dúvida universal que não aceitasse nada como verdade, a não ser ela mesma, seria não apenas contraditória, mas impensável e impossível, pois se diluiria como dúvida ao diluir-se como pensamento de algo. Ademais, se a dúvida fosse realmente universal deveria abarcar a si mesma, e Descartes deveria também estendê-la ao pensamento que lhe traz a certeza de que duvida, mas isto ele não faz. Escapou-lhe, incrivelmente, que A DÚVIDA JÁ PRESSUPÕE O “EU” EXISTENTE QUE DUVIDA; logo, este não poderia jamais ser a conseqüência lógica (e muito menos ontológica) daquela. E muito menos a única certeza que tal dúvida "universal", inadvertidamente, deixou escapar: o "Penso".
Mas, como o melhor método de refutação é aceitar a premissa errada e dela extrair os corolários, concedamos a dúvida universal (ainda seguindo as pegadas de Derisi) e vejamos que bicho dá. Concedamos a possibilidade de um pensamento que, sem autodestruir-se, possa suspender todas as afirmações e negações e iniciar-se com uma dúvida real universal. Proponhamos a disjunção: ou há a dúvida universal, ou não há. Ora, se se aceita a dúvida universal, o Cogito não é válido porque tal dúvida estender-se-ia àquilo que Descartes considera certo: o mesmo Cogito. Portanto, dizer, como faz Descartes, que com o Cogito, ergo sum ele evadiu-se do círculo vicioso da dúvida universal não muda nada. Como brilhantemente afirma Derisi, posta em dúvida justamente a validez de todos os juízos da inteligência, como concluir algo por um ato da mesma inteligência? Estamos num beco sem saída. Como se vê, ou a dúvida universal existe, e o Cogito não é válido, ou vale o Cogito e a dúvida universal cai por terra. Tertium non datur. Eis a premissa com que se inaugura o pensamento moderno: um erro primário que não passaria despercebido a um estudante mediano do período escolástico.
Encerro este primeiro texto da série — que, ao final, mostrará o quão insustentável é o juízo cartesiano mais famoso — com duas frases de Derisi no luminoso livro acima citado:
“Com o seu Discurso, Descartes esboça uma filosofia de tipo imanentista, em que a inteligência "começa" por si mesma. Frente a uma filosofia que vai [em certo sentido] de fora para dentro, na qual a inteligência recebe do ser transcendente a luz da inteligibilidade, Descartes funda outra que vai de dentro para fora, na qual o ser é que é “iluminado” na imanência da própria inteligência” [o ser, na verdade, está à espera de que o "eu" pensante defina-o].
“Esta é a importância do Discurso do Método: ter mudado o curso da filosofia de realista em idealista; ter desconectado a inteligência do ser transcendente (o ser extra mentis [extramental ou além da nossa mente, diríamos]) para apriosioná-lo na imanência; ter, por fim, oposto a uma filosofia de tipo metafísico-gnosiológica outra puramente gnosiológica”.
* A este sofisma Santo Tomás já havia respondido séculos antes, inspirado em Aristóteles: Os sentidos jamais se enganam com relação ao seu objeto formal próprio. O objeto da audição é o audível, o do paladar o palatável, o da visão as formas visíveis, etc. Sendo assim, se eu coloco uma faca num copo d’água e a refração da água dá-me a imagem de uma faca com uma forma curva ou ondulada, diferente da faca real, isto não significa que o sentido da visão me “enganou”. Na verdade, o sentido deu-me a exata imagem de uma faca DENTRO do copo com água, e se a inteligência pressupôs que a faca mudou de forma, não culpemos os sentidos por tal asnice. Santo Tomás, com todo o seu realismo, diz que os sentidos só erram por um defeito no órgão que capta a realidade sensível (uma miopia no olho, por exemplo, ou um problema de surdez, etc).
“Penso, logo sou” (Cogito, ergo SUM). É com este o juízo que Descartes pensa reconstruir todo o edifício filosófico do ocidente, após brindar-nos com o que ele julga ser uma dúvida universal transformada em método. Veremos, mais à frente — pelo escrutínio feito por um bisturi dialético — se o Cogito cartesiano tem alguma chance de salvar-se como juízo válido. Antes disso, contudo, analisemos algumas das suas premissas, e não com a nossa modesta opinião, mas partindo do que o próprio filósofo francês consignou em seus textos. E isto sem deixar de assinalar que, em filosofia, as premissas de um sistema importam tanto ou mais do que as conclusões, pois a força de qualquer doutrina filosófica não se mede por suas afirmações expressas (dado que todas as têm!), e sim pelo que se supõe ser o seu edifício lógico, a sua estrutura interna, a sua capacidade de alcançar validez medindo forças com as teorias contrárias, com as genuínas objeções.
A dúvida universal
Como toda a filosofia anterior não lhe parecera segura, Descartes — que sem conhecer minimamente a escolástica considerava-a “dogmática" — anuncia ser necessário recomeçar tudo a partir de idéias claras e distintas, de um ponto por assim dizer arquimédico no qual o edifício filosófico, enfim, encontrasse o seu fundamento. A isto ele foi “inspirado” por três sonhos* (o que é verdadeiramente emblemático, para uma filosofia idealista), e, a partir desta famosa jornada onírica, o pensador francês acreditou-se um iluminado, um escolhido para mudar os destinos da filosofia.
A mathesis universalis de Descartes parte da certeza de que os nossos conhecimentos são duvidosos (menos, é claro, o conhecimento pressuposto neste juízo, do qual ele tem toda a certeza, o que põe a nu a petitio principiis). E duvidosos a começar pelos dados que nos fornecem os sentidos e a imaginação*, os quais, para o cartesiano, são totalmente enganosos. É preciso, portanto, encontrar algo sólido, um critério seguro que nos permita discernir o verdadeiro do falso. E ele supõe encontrá-lo na dúvida “universal” a partir da qual chega à certeza de que pensa, e tal certeza lhe trará outra: a de que é — ou seja, a de que existe. "Penso, logo sou (existo)".
Pergunta-se Octavio Derisi em seu para muitos embaraçoso Filosofía Moderna y Filosofía Tomista: é possível semelhante “dúvida universal”? De cara, registre-se que a simples postulação da dúvida “universal” mostra o total desconhecimento de Descartes da resolução que deram ao mesmo problema — e partindo de um ponto muitíssimo mais profundo e seguro — Aristóteles, na Metafísica, e Santo Tomás, em seu Comentário à Metafísica, III, lec. I, que não cabe expor aqui em detalhes, para não mudar de assunto. Por favor, procurem os textos e os leiam com atenção.
A resposta decisiva é “não”! Não é possível tal dúvida. E as razões são muito simples, como diz o mesmo Derisi. A primeira é que a dúvida, como todo pensamento, deriva do objeto que significa (no caso, os conhecimentos [dubitáveis] que temos acerca das coisas), e não de si mesma. Uma dúvida universal que não aceitasse nada como verdade, a não ser ela mesma, seria não apenas contraditória, mas impensável e impossível, pois se diluiria como dúvida ao diluir-se como pensamento de algo. Ademais, se a dúvida fosse realmente universal deveria abarcar a si mesma, e Descartes deveria também estendê-la ao pensamento que lhe traz a certeza de que duvida, mas isto ele não faz. Escapou-lhe, incrivelmente, que A DÚVIDA JÁ PRESSUPÕE O “EU” EXISTENTE QUE DUVIDA; logo, este não poderia jamais ser a conseqüência lógica (e muito menos ontológica) daquela. E muito menos a única certeza que tal dúvida "universal", inadvertidamente, deixou escapar: o "Penso".
Mas, como o melhor método de refutação é aceitar a premissa errada e dela extrair os corolários, concedamos a dúvida universal (ainda seguindo as pegadas de Derisi) e vejamos que bicho dá. Concedamos a possibilidade de um pensamento que, sem autodestruir-se, possa suspender todas as afirmações e negações e iniciar-se com uma dúvida real universal. Proponhamos a disjunção: ou há a dúvida universal, ou não há. Ora, se se aceita a dúvida universal, o Cogito não é válido porque tal dúvida estender-se-ia àquilo que Descartes considera certo: o mesmo Cogito. Portanto, dizer, como faz Descartes, que com o Cogito, ergo sum ele evadiu-se do círculo vicioso da dúvida universal não muda nada. Como brilhantemente afirma Derisi, posta em dúvida justamente a validez de todos os juízos da inteligência, como concluir algo por um ato da mesma inteligência? Estamos num beco sem saída. Como se vê, ou a dúvida universal existe, e o Cogito não é válido, ou vale o Cogito e a dúvida universal cai por terra. Tertium non datur. Eis a premissa com que se inaugura o pensamento moderno: um erro primário que não passaria despercebido a um estudante mediano do período escolástico.
Encerro este primeiro texto da série — que, ao final, mostrará o quão insustentável é o juízo cartesiano mais famoso — com duas frases de Derisi no luminoso livro acima citado:
“Com o seu Discurso, Descartes esboça uma filosofia de tipo imanentista, em que a inteligência "começa" por si mesma. Frente a uma filosofia que vai [em certo sentido] de fora para dentro, na qual a inteligência recebe do ser transcendente a luz da inteligibilidade, Descartes funda outra que vai de dentro para fora, na qual o ser é que é “iluminado” na imanência da própria inteligência” [o ser, na verdade, está à espera de que o "eu" pensante defina-o].
“Esta é a importância do Discurso do Método: ter mudado o curso da filosofia de realista em idealista; ter desconectado a inteligência do ser transcendente (o ser extra mentis [extramental ou além da nossa mente, diríamos]) para apriosioná-lo na imanência; ter, por fim, oposto a uma filosofia de tipo metafísico-gnosiológica outra puramente gnosiológica”.
* A este sofisma Santo Tomás já havia respondido séculos antes, inspirado em Aristóteles: Os sentidos jamais se enganam com relação ao seu objeto formal próprio. O objeto da audição é o audível, o do paladar o palatável, o da visão as formas visíveis, etc. Sendo assim, se eu coloco uma faca num copo d’água e a refração da água dá-me a imagem de uma faca com uma forma curva ou ondulada, diferente da faca real, isto não significa que o sentido da visão me “enganou”. Na verdade, o sentido deu-me a exata imagem de uma faca DENTRO do copo com água, e se a inteligência pressupôs que a faca mudou de forma, não culpemos os sentidos por tal asnice. Santo Tomás, com todo o seu realismo, diz que os sentidos só erram por um defeito no órgão que capta a realidade sensível (uma miopia no olho, por exemplo, ou um problema de surdez, etc).
*A 10 de novembro de 1619, três sonhos maravilhosos advertem Descartes de que está destinado a unificar todos os conhecimentos humanos por meio de uma "ciência admirável" da qual será o inventor.
Em tempo: No final da série, veremos se, de algum ponto de vista, o Cogito, ergo sum pode ser considerado como um juízo necessariamente verdadeiro. Antes — é claro! — deixando consignadas as definições dos termos implicados: “juízo”, “necessidade” e “verdade”.
Em tempo: No final da série, veremos se, de algum ponto de vista, o Cogito, ergo sum pode ser considerado como um juízo necessariamente verdadeiro. Antes — é claro! — deixando consignadas as definições dos termos implicados: “juízo”, “necessidade” e “verdade”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário