Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade. (II Coríntios 13,8)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

As relações entre fé e razão (II)


Sidney Silveira

c) Com relação ao domínio da fé

Como corolário das duas confusões anteriores está a perda da visão de qual seja o verdadeiro domínio da fé. Sim, pois se a fé e a ciência se reduzem a uma mesma origem (o saber humano), e se os conceitos de cada uma se identificam na raiz — na exata medida em que a razão passa a atribuir-se a possibilidade de provar a fé —, obviamente a fé sai de sua fonte sobrenatural e, por assim dizer, se naturaliza.

Na imensa maioria dos casos, tal naturalismo acaba colocando a fé num mesmo plano do conhecimento “científico”, o que é absurdo. Soube eu de um teólogo brasileiro, por exemplo, para quem o mar vermelho se abriu graças a um fenômeno natural — o que é muito mais difícil de crer. Ou seja: no exato instante em que Moisés rogou a Deus, um fenômeno natural (não explicado) dividiu as águas para o povo hebreu passar, fenômeno esse interrompido exatamente na hora em que os egípcios passavam. Papa-léguas!! E as teorias loucas se multiplicam.

Vale dizer que isto não é prerrogativa do nosso tempo. Já na Idade Média, vários erros decorrentes da má-resolução dada ao problema das relações entre fé e razão grassavam, com a diferença específica de que, então, o Magistério se pronunciava solenemente, condenando as heresias e chamando os fautores do erro ao arrependimento e à retratação ou, então, impondo-lhes o silêncio com relação às suas doutrinas — caso não quisessem ser excomungados.

A título de exemplo, vejamos algumas dessas heresias conseqüentes à confusão entre fé e razão, com as quais, a propósito, Santo Tomás teve brilhantemente de se confrontar:

1- Negação da Trindade;
2- necessitarismo da ação de Deus na criação do mundo;
3- eternidade do mundo;
4- negação do primeiro homem;
5- negação da potencialidade na atividade dos anjos;
6- negação da Providência divina em relação a cada coisa do mundo;
7- proposição de um único intelecto possível para todos os homens;
8- pluralidade das formas substanciais no homem individual;
9- influxo necessário e determinante dos astros sobre as potências superiores da alma humana (inteligência e vontade);
10- tese de que o homem conhece as coisas particulares por iluminação divina, e não por abstração de suas qüididades materiais, etc.

Todas essas opiniões, direta ou indiretamente, partem da confusão acerca de quais sejam os objetos da fé e os da razão, e os limites e direitos de cada uma.

Assim, se Maria é sempre Virgem, se Adão foi o primeiro homem, se Deus criou o mundo e todas as espécies de animais ex nihilo, se Maria disse “sim” ao Anjo da Anunciação, se o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, etc., são verdades de fé que não cabe à razão provar, embora a ciência teológica possa extrair alguns corolários dessas verdades, com o auxílio luxuoso da filosofia, ancilla theologiæ.

Veremos, no próximo texto, a posição de Santo Tomás no tocante a este tema de importância capital, a partir das distinções entre fé e razão e entre teologia e filosofia, que em sua teoria são complementares. E veremos também que o Aquinate jamais admite o Credo ut intelligam anselmiano como se representasse uma transformação do conteúdo da fé em algo científico.

Deixemos consignados, desde logo, que de acordo com o Doutor Comum há as seguintes distinções:

a) Quanto ao objeto material: a razão parte do visum, e a fé, do non visum (explicaremos a ambos);
b) Com relação ao objeto formal: a razão parte de evidências, e a fé da autoridade divina;
c) Com relação a seus efeitos: a razão anui às conclusões por uma espécie de necessidade intrínseca, graças às conclusões que a ela se impõem a partir de princípios e evidências, e a fé chega a suas conclusões livremente, pois não parte de nenhuma evidência, não obstante tenha a ser favor os elementos de credibilidade.

Fonte: http://contraimpugnantes.blogspot.com/2009/11/as-relacoes-entre-fe-e-razao-ii.html

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

As relações entre fé e razão (I)

São Paulo fala da fé aos aturdidos gregos,
que lhe pediam "razões" suficientes
Sidney Silveira
Um amigo apresentou-me noutro dia o vídeo de uma aula de filosofia que muito bem poderia integrar a coleção Primeiros e Últimos Passos (ou Definitivos Tropeços), na qual o professor, referindo-se a Santo Tomás, minimizava a problemática das relações entre fé e razão como se fora coisa de somenos importância. Na verdade, trata-se de um dos mais espinhosos problemas filosóficos e teológicos, que somente alcançou uma solução satisfatória — e definitiva — com Tomás de Aquino, como veremos.

Algumas posições equívocas foram esboçadas, antes e depois do Aquinate. Destaquemos as principais:

a) Oposição irredutível entre fé e razão. Aqui se incluem duas correntes extremadas, ambas condenadas pela Igreja: 1- a do fideísmo, em que a razão é vista como um perigo para a fé, na medida em que os mistérios são de todo inescrutáveis; 2- e a do racionalismo, que defende um duplo horizonte de verdades (as de fé e as de razão) que nada têm de comum entre si.

b) Harmonia entre fé e razão. Aqui, também vemos duas posições: 1- a que se baseia na distinção e complementaridade entre ambas, 2- e a que se baseia na separação entre as duas. Para defensores dessa última idéia, haveria uma espécie de harmonia acidental (e não essencial) entre a razão e a fé. Esta posição problemática acabou desterrando a fé de seu habitat, levando-a ao âmbito do mero sentimentalismo ou, então, transformando-a numa pura e simples moral. Ou ainda — em uma terceira vertente — chegou-se a defender a possibilidade de provar os artigos da fé por meios racionais.

Como diz M. G. Manser, O.P, no já mencionado livro A Essência do Tomismo, obra magistral que nos orienta no presente texto, a má-interpretação da fórmula Credo ut intelligam de Santo Anselmo — que, em verdade, já havia sido formulada por São Pascácio Radberto — levou a que muitos considerassem se tratar de um “avanço” da fé em direção ao conhecimento. Em suma, essa visão levou ao perigo de imaginar que o católico deveria passar da fé ao saber demonstrativo sobre a fé. Isto gerou uma confusão tríplice.


1- Com relação à origem da fé;
2- Com relação ao conceito de fé;
3- Com relação ao domínio da fé.

Vejamo-las, tendo como base o precioso trabalho de Manser:

1- Com relação à origem da fé

Em primeiro lugar, deve-se frisar que a razão e a Revelação partem de distintas fontes de verdade. Quem submete uma à outra ou amplia o campo de uma em detrimento do da outra não faz a distinção correta. Estes casos extremos podem ser ilustrados, na Primeira Escolástica, pelo monge inglês beneditino Alcuíno (735-804), que gostaria de provar até mesmo as questões filosóficas por meio da Sagrada Escritura; e, em seus antípodas, por Rábano Mauro (776-856), que pretendia reduzir toda a Sagrada Escritura às sete artes liberais.

Escoto Erígena (810-877), por sua vez, leva o Credo ut intelligam a uma interpretação rigorosíssima — confusamente influenciada pelo racionalismo. Para ele, todo e qualquer conhecimento da verdade pressupõe a fé. Lê-se num trecho do seu De Divisione Naturæ: “Ex ea enim omnem veritatis inquisitionem initium sumere necessarium est”. No século seguinte, seguem esta posição Roger Bacon e Raimundo Lúlio.

Hugo de São Vítor (1096-1141), outro autor importante, não possui uma só definição de filosofia (dentre as muitas que nos legou) que a distinguisse corretamente da fé. E a mesma confusão é compartilhada por John de Salisbury (1120-1180), que mistura os âmbitos da fé e da filosofia ao dizer que a origem da filosofia é... a Graça!

2- Com relação ao conceito de fé

Quando a inteligência conhece uma coisa, pode-se dizer que tem dela uma espécie de visão (visum) intelectiva, pois a inteligência assente ao objeto do saber porque tem diante de si uma verdade evidente. O objeto da fé, por sua vez, não parte de nenhuma evidência (e sim de uma non visum), pois se apóia na autoridade divina, na Revelação. Para os adeptos do Credo ut intelligam que pretendiam transformar a fé [não me refiro aqui à teologia!] em ciência, era uma pedra de tropeço a passagem de São Paulo (em Hb. XI, 1) na qual o Apóstolo diz que a fé é uma “certeza daquilo que não se vê”. Em suma, se se considera como objeto da fé o que é por si evidente ou demonstrável, a coisa se complica enormemente. Nem mesmo o prudente Pedro Lombardo (1100-1160) passa por este problema sem alguma confusão, pois admite uma espécie de conhecimento interno da fé (em III, Sent., 24, 3).

O já mencionado Hugo de São Vítor simplesmente considera a frase paulina “incompleta” (em De Sacram. Christ. Fidei, I) e distingue três classes de crentes: a) as pessoas simplórias que crêem piedosamente, mas sem conhecimento (sola pietate credere eligunt); b) outros que fundamentam racionalmente o conteúdo daquilo em que crêem (alii ratione approbant quod fide credunt); c) e os que têm a certeza da fé a partir da pureza da inteligência (puritas intelligentiæ apprehendit certitudinem)*. Veja-se que estamos aí perigosamente próximos da gnose, ou seja, de uma espécie de salvação pelo conhecimento.

Ricardo de São Vítor (? – 1173), discípulo de Hugo, chega a lamentar — em seu De Trinitate — que, em favor da divina Trindade, se aduzam apenas provas de autoridade, e não de razão.

O erro não escapou nem mesmo a autores proclamados santos, como o próprio Anselmo de Cantuária, que no proêmio do seu Monologium afirma a necessidade de provar as verdades da fé. Tal intento não se limita à Trindade, mas a tudo o que cremos de Cristo (omnia quæ de Christo credimus), e sem apelar à Sagrada Escritura (sine Scripturæ auctoritate), mas com razões necessárias (necessariis rationibus ex necessitate). Com isto, Anselmo comete um erro grave: simplesmente exclui o verdadeiro objeto formal da fé, que é a autoridade divina, e o identifica com o saber humano. E o mesmo faz Abelardo** (1079-1142), que compôs o tratado De Unitate et Trinitate por insistência de discípulos que pediam razões filosóficas para sustentar as doutrinas da fé.

Em suma, a tentativa de comprovar os artigos da fé com razões filosóficas permeia a obra de quase todos os pensadores de escol, durante um largo período histórico. Alguns, para aduzir um argumento corroborante às suas teses, chegaram a afirmar que os pagãos tinham conhecido racionalmente a Trindade — tese a que nos dedicaremos no próximo texto sobre o tema.

Veremos como todos esses erros ou heresias, sem nenhuma exceção, foram refutados por Santo Tomás — cuja doutrina teológica foi depois consagrada pelo Magistério da Igreja e acolhida por inúmeros Papas em série. A começar pelo seguinte princípio do Aquinate. “As verdades da fé cristã não podem ser contrariadas pelas verdades [adquiridas] pela razão” (quod veritati fidei christianæ non contrariatur veritas rationis)***. Caminhemos aos poucos, que o tema assim o exige.

(continua)
* Cfme. De Sacram. Christ. Fidei, c. 4.
** Se Deus quiser, ainda antes do Natal deste ano, a Sétimo Selo apresentará uma obra magna de São Bernardo que eu recomendo a todos: As Heresias de Pedro Abelardo, em edição bilíngüe. Veremos, na Apresentação ao livro, a verdadeira face teológica, filosófica e moral de Abelardo — autor tão incensado por historiadores e filósofos que hoje parasitam a Igreja, seja em universidades católicas, seja em grupos de intelectuais ligados a ordens religiosas ou até mesmo em Seminários...
*** Suma Contra os Gentios, I, 9.

Fonte: http://contraimpugnantes.blogspot.com/2009/11/as-relacoes-entre-fe-e-razao-i.html

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