Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade. (II Coríntios 13,8)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (10 de 11)

X

De todo este largo discurso estou vendo que tirastes duas conclusões todos os que me ouvistes: uma muito conforme ao assunto que propus, e outra muito contrária a ele. A primeira conclusão é que verdadeiramente, sem dúvida, é muito grande coisa o ser santos. Porque, se Deus, entre todos seus atributos de infinita perfeição estima e em certo modo reverencia sobre todos o atributo de santo; e se todas as Pessoas da Santíssima Trindade, e cada uma em particular, nos deram tão soberanos exemplos e documentos desta mesma estimação; se a Virgem Mãe de Deus, por antonomásia, Virgem Prudentíssima, entre todos os bens e felicidade da terra e do céu, nenhuma outra levou os olhos, roubou o coração e prendeu os passos, senão a santidade de todos os santos, em que também o mesmo Deus, seu Filho, a sublimou sobre todos; se os anjos e serafins que assistem ao lado do trono divino, o que só exaltam e apregoam, e os louvores que cantam à majestade de seu Senhor, é ser Santo, Santo e mais Santo; e se a excelência em que o mesmo Senhor confirmou aos anjos bons e obedientes, e a de que privou aos maus e rebeldes, foi a de ser santos; e se os santos de todas as hierarquias, patriarcas, profetas, apóstolos, mártires, confessores, virgens, tanto trabalharam, tanto padeceram, e tais extremos e excessos fizeram por chegar, como chegaram, a ser santos, não há dúvida que o ser santo é grande coisa, e não só grande, senão a maior de todas. E esta é a primeira conclusão que inteiramente concorda com a primeira parte do meu assunto.

A segunda conclusão, e totalmente contrária à segunda parte dele, é que eu prometi de vos provar quão facilmente podemos todos ser santos, e tudo quanto até agora tenho mostrado e discorrido, pelas vidas e ações dos mesmos santos, e por suas grandes batalhas e vitórias, são coisas todas tão dificultosas e repugnantes à natureza, e tão superiores à fraqueza humana, que antes parece nos impossibilitam totalmente, e nos tiram toda a esperança, não só de chegar a ser, mas ainda de aspirar a ser santos. Ora, não vos desanimeis os que isto inferis, antes vos animai e consolai muito, porque a facilidade que vos prometi, ainda é mais fácil do que eu o propus e vós podeis imaginar. Tudo o que fizeram os santos por ser santos, foi muito bem empregado, e ainda pouco, porque muito mais importa, muito mais vale, e muito mais é ser santos; mas, para chegar a o ser, não é necessário tanto, senão muito menos. Não é necessário guardar a perpétua continência das virgens, porque tendes a licença e liberdade do matrimônio, com que foram santos Adão e Eva, Zacarias e Isabel, Joaquim e Ana. Não é necessário ser anacoreta, nem ir viver aos desertos, porque podeis ser santos na vossa casa, como José, Samuel, Davi, que morreram na sua. Não é necessário ser doutor, nem queimar as pestanas sobre os livros, porque basta que saibais os Mistérios da Fé e os Mandamentos, como S. Paulo, por sobrenome o Simples, S. Junípero, Santo Hermano, e aqueles de quem dizia Santo Agostinho: Levantam-se os indoutos, e levam o reino do céu aos letrados. Não é necessário ser mártir, porque não só não padecendo martírio, mas fugindo dele e escondendo-vos, podeis ser santo, como o foi Santo Atanásio, S. Feliz, S. Silvestre, e outros. Nem menos é necessário ser apóstolo, patriarca ou profeta, porque estes ofícios e dignidades passaram com o tempo, e podeis ser santos como o foram todos os que depois deles vieram.

Pois, que é necessário para ser santo? Uma só coisa, e muito fácil, e que está na mão de todos, que é a boa consciência ou limpeza de coração, como diz o nosso tema: Beati mundo corde. Olhai como Deus quis facilitar o céu e o ser santos, que pôs a bem-aventurança e santidade em uma coisa que ninguém há que não tenha, e a mais livre e mais nossa, que é o coração. Assim como o coração é a fonte da vida, assim é também a fonte da santidade; e assim como basta o coração para viver, ainda que faltem outros membros e sentidos, assim, e muito mais, basta a pureza de coração para ser santo, ainda que tudo o mais falte. Se o ser santo dependera dos olhos, não fora santo Tobias, que era cego; se dependera dos pés, não fora santo Jacó, que era manco; se dependera de algum outro membro do corpo, não fora santo Jó, que estava tolhido de todos, e só lhe ficou a língua: e, ainda que não tivera língua, também fora santo, porque Santa Cristina, sendo-lhe a língua cortada, louvava a Deus com o coração, e com o coração, sem língua, eram tais as suas vozes, que as ouviam não só os anjos no céu, senão também os circunstantes na terra. De sorte que, para um homem ser santo, não é necessário coisa alguma fora do homem, nem ainda é necessário todo o homem: basta-lhe uma só parte, e essa a primeira que vive e a última que morre, para que lhe não possa faltar em toda a vida, que é o coração.

Tendo o coração puro, e ou vos faltem ou sobejem todas as outras coisas, nem a falta vos será impedimento, nem a abundância estorvo para ser santo. Salomão pedia a Deus (Prov. 30,8) que o não fizesse rico nem pobre, mas que lhe desse o necessário para passar a vida, receando que não poderia ser santo em qualquer daqueles extremos; mas eu vos asseguro que, ou sejais rico, ou pobre, ou pobríssimo, de qualquer modo podeis ser santo. Se fordes rico e puderdes dar esmola, dai-a, e sereis santo, como foi S. João Esmoler; se fordes pobre, e tiverdes necessidade de pedir esmola, pedi-a, e sereis santo, como foi Santo Aleixo; e se fordes tão desamparado, que não tenhais quem vos dê esmola, tende paciência, e sereis santo, como foi S. Lázaro.

Tertuliano teve para si que os reis e imperadores não só não podiam ser santos, mas nem ainda cristãos, mas errou neste sentimento, como em outros, Tertuliano, porque escreveu quando ainda no cristianismo não havia mais coroas que as do martírio. Rei foi de França S. Luís, rei de Inglaterra Santo Eduardo, rei de Escócia S. Guilhelmo, rei de Suécia Santo Erico, rei de Dinamarca S. Canuto, rei de Boêmia S. Casimiro, rei da Noruega Santo Olao, rei de Castela S. Fernando, e imperador Santo Henrique, e todos santos, porque, se na grandeza da sua fortuna têm maior matéria para os vícios os príncipes, também têm mais alta esfera para as virtudes.

Das dignidades eclesiásticas se deve fazer o mesmo juízo. Uns santos vereis com mitras de bispos, com capelos de cardeais e tiaras de pontífices na cabeça, e outros com essas mitras, capelos e tiaras aos pés, e por quê? Uns porque deixaram o lustre da dignidade, outros porque sustentaram o peso; uns porque reconheceram o perigo, outros porque continuaram o trabalho; mas, uns e outros, santos. Não foi menos santo São Gregório, sendo papa, do que S. Pedro Celestino, porque renunciou à tiara; nem menos santo Agostinho, sendo bispo, do que Santo Tomás, porque recusou às mitras; nem menos santo São Carlos Borromeu, sendo cardeal, do que S. Francisco de Borja, porque não quis aceitar os capelos.

Aquele é e será mais santo, em qualquer estado, que usar dele com mais puro coração. E se não, discorrei por todos os estados, ou altos ou baixos do mundo, e achareis neles o vosso, para que vejais que no vosso, se quiserdes, podeis ser santo. Que lugares há mais mal avaliados no mundo do que os palácios dos reis, como oficinas da vaidade, da potência, da inveja e do engano, e onde nunca, ou raramente, entra a verdade; mas nem por isso há neles ofício que não esteja santificado. Mordomo-mor foi S. Leodegário, camareiro-mor S. Jacinto, estribeiro-mor S. Vandrigilo, monteiro-mor S. Mauraneu, porteiro-mor S. Patrício, copeiro-mor S. Patroclo, capitão da guarda S. Sebastião, viador S. Saturo, secretário Santo Anastácio, conselheiro S. João Damasceno, S. Germano, S. Melânio, e em cada um destes ofícios muitos outros santos.

Uma das profissões mais arriscadas a não ser justo é a dos ministros da justiça, ou sejam os que a sentenciam, ou os que a defendem, ou os que a escrevem, ou os que a executam; mas todos, se o fizerem com pureza de coração, podem ser santos. Santo Ereberto e Santo Tomás de Cantuária foram chanceleres; S. Hieroteu e S. Dionísio Areopagita, desembargadores; S. Pudente e Santo Apolônio, senadores; S. Fulgêncio, procurador da fazenda real; Santo Ambrósio, S. Crisóstomo e S. Cipriano, advogados; S. Marciano, S. Genésio e S. Cláudio, escrivães; Santo Anastásio e S. Ferréolo, juízes do crime; Santo Aproniano e S. Basilides, esbirros ou beleguins; e até no vilíssimo exercício de algozes foram santos S. Ciríaco, Santo Estratonico, e outros.

Em nenhum gênero de vida parece que anda mais arriscada a eterna que no daqueles que trazem a soldo a temporal à custa do sangue próprio e alheio, tão duros como o ferro de que se vestem, tão violentos como o fogo de que se armam, e tão vãos e jactanciosos como o vento que nas caixas e trombetas os chama, e nas bandeiras os guia. É porém infinito o número de soldados santos, que dando a vida constantemente por Cristo na Igreja militante, ornados de coroas e palmas entraram na triunfante. Só na perseguição de Trajano padeceram martírio de uma vez seis mil soldados, que foi a famosa Legião dos Tebeus; e na de Diocleciano e Maximiano também em um só dia dez mil, desterrados primeiro para a Armênia, e depois crucificados. Não falo nos generais, como Santo Eustáquio e Constantino, nem nos marechais, como S. Nicostrato e Santo Antíoco, nem nos tribunos eu mestres de campo, como S. Marcelino e S. Floreano, nem nos capitães de cavalos, como S. Querino e S. Vital, nem nos capitães de infantaria, como S. Górdio e S. Marcelo, nem nos alferes, como Santo Exupério e S. Juliano, porque da virtude e valor dos soldados se vê quão santos seriam os que os governavam.

S. Paulo disse que a raiz de todos os pecados é a cobiça; e estando estas raízes tão arraigadas nos que professam a mercancia, e tão estendidas em cada um por todas as partes do mundo, nem por isso deixam de produzir frutos de santidade. Delas nasceu um S. Francisco de Assis, um S. Fulgêncio, um S. Guido, e não só um, senão dois Firumêncios, ambos santos, e outros muitos.

E, se de todos estes exercícios, de sua natureza tão perigosos, e quase encontrados com aqueles em que se lavram os santos tem dado a terra ao céu tantos e tão gloriosos, que será nos ofícios e artes mecânicas, em que o trabalho, companheiro inseparável das virtudes, desterra a ociosidade, que é origem de todos os vícios? Não falando no gloriosíssimo S. José, nos Santos Apóstolos e no mesmo Cristo, que, depois de fabricar o mundo, se não desprezou de trabalhar em uma destas artes, escolhendo entre todas a que mais simpatia tinha com o lenho da cruz. S. Jacó de Boêmia foi carpinteiro, S. Sinforiano escultor, S. Paulo Helático torneiro, S. Floro serrador, Santo Elígio ourives, Santo Andrônico prateiro, S. Duustano ferreiro, S. Marciano armeiro, S. Gildas fundidor, S. Próculo pedreiro, S. Crispim sapateiro, Santo Homobono alfaiate, Santo Onúfrio tecelão, S. Gualfundo celeiro, Santo Aquilas corrieiro, S. João de Deus livreiro, Santo Isidoro lavrador, S. Maurício hortelão, S. Leonardo pastor, Santo Alderico vaqueiro, Santo Arnoldo marinheiro, S. Patênio pescador, S. Ventiro almocreve, S. Ricardo carreiro, Santo Adriano correio, S. Guilhelmo moleiro, S. Gemiano taverneiro, S. Quiríaco cozinheiro, Santo Alexandre carvoeiro, Santo Henrique carniceiro, Santo Erineu varredor das imundícias ou carretão: e não há ofício, estado e exercício tão trabalhoso, tão baixo, e ainda pouco limpo, que, se se faz com limpeza de coração, não possa fazer santos. Beati mundo corde.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O boi e o burro


Paulo Miranda

“O boi conhece o seu dono, e o jumento o presépio do seu senhor,
as Israel não me conheceu”
(Is. I, 3)

Foi longa a procura na noite fria. Uma porta, um pedido, uma recusa. Outra porta, outra rejeição. E de recusa em recusa, eles muito caminharam noite adentro, batendo em todas as portas, até, finalmente, obterem acolhida, em lugar onde não havia portas. Um lugar que lhes deu guarida e pousada. Hospedeiros que não recusaram dividir com eles sua morada.

Um boi e um burro, num estábulo.

Era a noite de Natal.

Boi e burro foram, assim, testemunhas do maior mistério da história, naquela noite que dividiria para sempre os tempos.

Boi e burro acolheram o Criador nascendo da criatura.

Boi e burro viram Maria Santíssima dar à luz a Luz, no presépio escuro.

Boi e burro tomaram o lugar destinado aos homens, na recepção do Deus feito homem.

Boi e burro, que sempre serão lembrados em nossos presépios. Símbolos do povo eleito e dos pagãos. Mas símbolos, igualmente, da frieza do coração humano, que recusou, em sua chegada ao mundo, acolher o Menino Deus.

Em vão, Daniel previra a época exata; em vão, Miquéias apontara o lugar preciso do nascimento do Messias. Vindo ao mundo em Belém, exatamente quando cumpridas as setenta semanas de anos da profecia, o Esperado das gentes ali não encontrou nenhum dos sacerdotes ou doutores da lei, representantes do povo que elegera e a quem tanto cumulara de graças. Doutores da lei que, pouco depois, no silêncio da estrela, souberam dizer precisamente aos Magos onde e quando o grande evento se daria.

Mas ali não se fizeram presentes.

No pequeno estábulo de Belém, além da Virgem Santíssima e do fiel São José, estava apenas o boi. E o burro.

E foi somente quando um Anjo anunciou a boa-nova aos pastores e a estrela guiou os reis, que judeus e gentios, pastores e reis magos, acorreram à gruta onde um Menino os esperava.

O Evangelho nos mostra que o futuro não seria diferente do que ocorreu em Belém.

Durante toda a sua pregação, o Senhor não fez senão repetir o gesto do bom São José. Bater insistentemente à porta das almas, pedindo acolhida: “Eis que estou às portas e bato; se alguém ouvir minha voz e me abrir a porta, eu entrarei e cearei com ele e ele comigo” (Ap: III, 20).

E sucederam-se as recusas: dos escribas, dos fariseus, do povo judeu, dos gentios e até mesmo, no momento culminante de Sua vida, a atroz negação de seus discípulos e apóstolos.

De recusa em recusa, o Menino Jesus encontrara leito apenas entre as palhas do estábulo de Belém. De negação em negação, Cristo encontrou repouso no lenho da Cruz do Calvário: "Et inclinato capite tradidit spiritum" (Jo: XIX, 30).

Ressuscitado, Jesus atravessou paredes. Mas, para penetrar nas duras muralhas do coração humano, não deixa de bater à nossa porta, esperando que a abramos, para que nasça e viva em nossas almas.

Como se o Rei dos Céus necessitasse do precário abrigo que Lhe podemos oferecer. Como se não fosse nosso o bem de Sua augusta presença.

E hoje, como no Natal do Senhor, há muitos que sabem onde Ele está, mas não vão ao Seu encontro. Há mesmo sacerdotes que indicam caminho oposto ao de Jesus. Há alguns outros que até ensinam o correto caminho para chegar a Ele. Mas que preferem, como os doutores da lei, permanecer comodamente em Jerusalém, cuidando de seus interesses menores. E relegando Jesus ao abandono.

Fonte: Montfort
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Que neste Natal todos nós tenhamos as portas abertas de nossos corações para receber o Menino Jesus.


Grupo de Estudo Veritas - Fides et Ratio

Sermão de Todos os Santos (09 de 11)

IX

E se estes extremos fizeram as santas virgens por conservar a pureza virginal na paz, que fariam para a defender na guerra? A maior e mais dura guerra com que podiam combater a constância daquelas fortíssimas donzelas os amorosos inimigos, que tão prendados estavam de sua beleza, era a terrível e perigosa indiferença com que lhes propunham a eleição de um de dois extremos, ou o matrimônio ou o martírio, ou casar ou morrer, ou perder o estado virginal ou a vida. Entre estes dois extremos não se dava meio, e cada um deles, vestido das circunstâncias que o acompanhavam, ainda era mais perigoso e mais terrível, porque a vida, que se lhes oferecia no matrimônio, era adornada de jóias, de riquezas, de delícias, de grandezas, de coroas, e ainda do mesmo império do mundo; e a morte, que se lhes ameaçava no martírio, era armada de afrontas, de açoites, de cárceres, de cadeias, de grilhões, de algemas, de espadas, de torquezes, de serras, de rodas, de navalhas, de fogueiras, e de todos os instrumentos e máquinas com que pode atormentar o ferro e o fogo. Deixo os menores estados e fortunas, posto que ilustres e grandes, que a Santa Cecília se dotavam com as bodas de Valeriano, a Santa Tecla com as de Tamiris, a Santa Inês com o filho do prefeito de Roma, a Santa Luzia, a Santa Felícula, a Santa Flávia Domitila, com outros de semelhante qualidade e riqueza; só é muito, para não passar em silêncio, que a Santa Digna se oferecesse com o matrimônio a coroa de Ibérnia, a Santa Efigênia a de Etiópia, e a Santa Catarina e Santa Susana todo o Império Romano, que naquele tempo dominava o universo, a uma com as bodas do imperador Maximino, e a outra com as de Maximiano. Mas pesou tanto mais que tudo isto, na estimação daqueles invencíveis corações, a pureza virginal que professavam e tinham consagrado a Cristo, que pela conservar inteira e sem mancha dariam mil coroas e mil impérios, pesando-lhes somente de ter uma só vida, e não mil vidas, a que deram e sacrificaram pela defender. Não chegava Inês a ser mulher, porque era menina de treze anos, mas foi tão varonil e tão bizarro o seu ânimo, que não só aceitou a morte como martírio, mas a justificou como castigo. Disse, quando a levavam a morrer — como refere Santo Ambrósio — que justamente ia sentenciado e condenado à morte o seu corpo, pois contentara a outros olhos que não eram os de seu Esposo, Cristo: Pereat corpus, quod amari potest oculis quibus nolo.

E já que estamos nesta matéria, não vos quero ficar devedor de dois casos, que em toda a história eclesiástica me contentaram singularmente, e de tal resolução e bizarria que só por instinto divino se puderam empreender e executar. Nem me noteis de multiplicar tantos exemplos, porque quando se há de falar de muitos santos, senão no dia de todos? A maior desumanidade que os tiranos usavam, com as santas virgens, era mandá-las meter nas casas públicas entre as mulheres infames, para que ali perdessem por força a mesma castidade virginal que defendiam, não entendendo que esta virtude, como as demais, está na alma, e não no corpo, e que só se perde pelo consentimento, e não pelo sentimento. Sendo pois levada Santa Eufrásia a uma destas casas, seguiu-a um soldado denodado, para lograr a ocasião. Era virgem prudente, levava uma redoma de óleo consigo, e disse ao soldado desta maneira: — Com condição que desistas do teu intento, eu te darei um óleo, com o qual, se entrares untado nas batalhas, não poderás ser ferido dos inimigos. E para que vejas por experiência a virtude deste óleo, eis aqui me unto o pescoço com ele; faze tu a prova com a tua espada, e seja com toda a força. — Fê-lo assim o soldado, e, descarregando um talho com a maior força que pôde, a cabeça da santa saltou fora dos ombros, o corpo caiu morto em terra, e a pureza virginal ficou em pé e inteira. Era Santa Eufrásia de Antioquia; a que agora se segue era de Aquiléia, e chamava-se Digna. Tendo rendido aquela cidade Átila, rei dos hunos, gente feroz e bárbara, coube esta santa donzela por despojo a um capitão, o qual também a quis despojar da mais estimada jóia que, como tal, tinha consagrado a Cristo. Estavam alojados em uma torre que caía sobre o rio Natizon, e, provocada Digna do seu patrão, sem mostrar que se negava ao que ele pretendia, pediu-lhe que quisesse subir ao alto da torre, como o lugar mais retirado; subiram, e tanto que lá se viu Digna, voltada para o bárbaro que vinha atrás, disse-lhe: — Se me queres lograr, segue-me. — E dizendo isto, lançou-se da torre abaixo no rio, onde, afogando com a vida a sua injúria, salvou com a morte a sua castidade. Oh! Digna, verdadeiramente digna de eterna memória, e que ao teu valor, e ao de Eufrásia, se levantem duas estátuas de bronze no Templo da Virtude! Ambas tirastes do perigo mais purificada a pureza, uma por água, outra por sangue, merecedoras ambas que por vós se dissesse de vosso divino Esposo: Hic est Jesus, qui venit per aquam et sanguinem; non in aqua solum, sed in aqua et sanguine(11).

Mas, tornando às santas virgens, que aceitaram antes a morte que o matrimônio, só por conservar o estado virginal, ainda temos outras, que fizeram maior façanha, porque conservaram o mesmo estado virginal juntamente com o matrimônio. Isto foi conservar-se a sarça verde no meio das chamas, e não martírio que passou em um ou em poucos dias, senão de toda a vida. Santa Pulquéria, filha do imperador Arcádio, e, por morte de seu irmão Teodósio, herdeira do império, casou com Marciano, com tal condição que ela havia de guardar o voto que tinha feito de perpétua virgindade, e assim o guardou: o trono era comum, mas o tálamo dividido. Mais fizeram aqueles dois famosíssimos pares, um de Alemanha, outro de Inglaterra, a imperatriz Santa Conegundes e o imperador Santo Henrique, a rainha Santa Edita e o rei Santo Eduardo. Ambos estes príncipes foram casados, e em toda a vida, não só um deles, senão ambos, reciprocamente virgens. E por que não pareça que esta soberania anda vinculada às coroas, e só se acha em ânimos reais, na mesma virtude foram insignes Santa Basilisa e S. Julião, casados, de fortuna particular, posto que de nobre sangue. Mas se o estado do matrimônio é tão santo que, sendo dantes puro contrato, o fez Cristo um dos sacramentos de sua Igreja, e como tal uma das fontes da graça, se o uso e comércio natural dele é lícito e justo, por que se abstiveram estes santos dos interesses do mesmo comércio, do agrado tão doce e lisonjeiro dos filhos; da multiplicação da família, que o mesmo Deus chama bênção sua; da sucessão da casa própria, para a qual o que se trabalha é com gosto, e o que se adquire sem dor, porque não há de passar a outros; e, finalmente, por que se privaram daquele único reparo da mortalidade, e quiseram não só morrer em si, mas acabar consigo? Só se admirará desta resolução, como de todas as outras que temos referido, quem não souber quão grande coisa é ser santo, e quanto pode a ambição desta grandeza nos que verdadeiramente a conhecem. Tudo o que a natureza apetece, tudo o que os sentidos amam, tudo o que o gosto deseja, tudo o que mais solicita e se pega ao coração, tudo o que honra a memória e conserva a posteridade, deixaram e desprezaram estes santos; e, pelo contrário, tudo o que encontra e repugna a esses mesmos apetites naturais, tudo o que molesta e aflige esses mesmos afetos humanos, tudo mortificaram, tudo venceram, tudo sopearam, tudo abraçaram por vontade, e sem obrigação, por gosto, e sem repugnância, por amor, e sem dificuldade. Por quê? Porque queriam ser e haviam de ser santos, e por isso hoje o são, e os celebramos como bem-aventurados.

Notas:
(11) Este é Jesus Cristo, que veio com a água e com o sangue, não com a água tão-somente, senão com a água e com o sangue (1 JO. 5,6).

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (8 de 11)

VIII

Por remate, ou por coroa de todos os santos, põe a Igreja no último lugar o suavíssimo coro das Virgens, cujas vozes, posto que mais delicadas, mas igualmente fortes, nos acabarão de persuadir, como elas se persuadiram, esta mesma verdade. Pesa-me de chegar tão tarde a esta hierarquia, em que é obrigação deter-me mais um pouco; mas como a matéria é de casa, ao menos das grades para dentro será de agrado. Aos de fora seja embora de paciência.

Que extremos não obraram as santas virgens por ser santas? Que façanhas não empreenderam varonilmente? Que rigores e asperezas não executaram em si mesmas? Que galas, que regalos, que delícias e contentamentos da vida, que riquezas, que grandezas, que pompas e fortunas do mundo não desprezaram? Que finezas, que excessos, que máquinas dos que as pretendiam, não resistiram? Que bodas humanas, por altas e soberanas que fossem, não renunciaram, só por conservar e defender a virginal pureza, e manter a fé prometida a Cristo, com quem se tinham desposado? Santa Edita, filha de Elgaro, rei de Inglaterra, morto o pai e um irmão que tinha único, ficou herdeira do reino, e por mais instâncias que lhe fizeram os povos, juntos em cortes, que se casasse, nem o amor da casa real em que nascera, nem a sucessão da família e da coroa, nem a memória do pai e irmão, que nela se extinguia, foram bastantes para a mover um ponto da firmeza de seu propósito, nem para a arrancar do canto de uma religião, onde, coberta de cilício, amortalhou a vida e, depois, sepultou o corpo, que permaneceu incorrupto. Santa Eufrosina, senhora ilustríssima em Alexandria, não podendo de outro modo fugir e escapar de seu pai e do matrimônio nobilíssimo concertado por ele, mudando o trajo de mulher e o nome, e chamando-se Esmaragdo, desconhecida e em terra estranha, tomou o hábito de monge, em que viveu trinta e oito anos enterrada em uma estreita cela, donde nunca saiu. Santa Petronila, filha do Príncipe dos Apóstolos, S. Pedro — antes de ser chamado ao apostolado — tendo feito voto a Cristo, de perpétua virgindade, e não se podendo defender das bodas de Flaco, senhor romano, que com amor a solicitava, e com poder de armas a queria obrigar a ser sua esposa, pediu de prazo três dias para deliberar, e neles, com ferventíssimas orações, impetrou do mesmo Cristo lhe tirasse a vida, e assim o conseguiu valorosa e gloriosamente no fim do terceiro dia. Mais violentamente se defendeu de semelhante perigo Santa Maxelende, ilustríssima por sangue nos Estados de Flandres, mas mais ilustre pela causa de o haver derramado. Celebraram-se com grande pompa as festas das bodas concertadas por seus pais com Harduíno, senhor principal, rico e poderoso, que, entre muitos que pretendiam esta fortuna, a tinha alcançado. Foi levada por força a santa virgem às mesmas festas, mas negou a mão com tal desengano, e persistiu nele com tal firmeza que, afrontado e corrido o esposo de se ver desprezado, trocando o amor em fúria, se arremessou à espada, e a santa se deixou matar intrepidamente.

E posto que em tantos e tão apertados casos fosse admirável o valor e constância com que todas estas santas defenderam a pureza virginal que tinham prometido a Cristo, considerada porém a condição natural de mulheres, ainda tenho por maior façanha a de Santa Brígida Virgem, chamada a de Escócia, e a de Santa Uvilgo Fortis, que alguns, com errado mas bem apropriado nome, chamam Virgo fortis. Eram estas santas o extremo da formosura, e vendo-se por esta causa solicitadas e pretendidas de muitos e poderosos senhores para o matrimônio, pediram a seu divino Esposo as privasse daquela graça, que outras tanto estimam e com tantas artes afetam; e o Senhor, que só se namora da beleza da alma, se agradou tanto desta petição, que de repente ficaram tão feias e disformes, que ninguém as podia ver, e só elas se viam contentes.

Que direi dos rigores, asperezas e piedosas tiranias com que estes anjos em carne a mortificavam, afligiam, e verdadeiramente martirizavam? A austeridade de vida, o rigor e horror das penitências de Santa Clara, primeira cópia do retrato original de Cristo crucificado, seu padre, São Francisco, quem há que a possa declarar? A de Santa Azela, virgem romana, dentro em Roma, e quando Roma era o maior teatro das delícias e vaidades do mundo, declarou S. Jerônimo. Diz que da mais populosa cidade fez ermo; que a terra nua lhe servia de cama e de lugar de oração; que os joelhos, pela muita continuação dela, se lhe tinham endurecido em calos como de camelo; que se sustentava do jejum, e que só o quebrava com pão e água, mas com tal moderação e parcimônia, que nunca, nem com pão matava a fome, nem com água a sede; que jamais viu nem foi vista de homem, ainda quando visitava os sepulcros dos mártires, e que tendo uma irmã também donzela, esta a amava, mas não a via. Santa Margarida, filha dos reis de Hungria, de quatro anos tomou o hábito de monja, e de cinco se vestiu de cilício; de dia, para mortificar os passos, entre os pés e o calçado, metia certos abrolhos de ferro, e de noite, para o pouco sono que tomava sobre uma tábua, se cingia de peles de ouriços com todos seus espinhos. Santa Genoveva, padroeira da real cidade de Paris, a quem o famosíssimo Simeão Estilita desde a Grécia, onde vivia sobre a sua coluna, mandava visitar a França e encomendar-se em suas orações Santa Macrina, irmã de S. Basílio Magno, tanto no sangue como na aspereza e severidade da vida. Santa Lutgardis, legítima filha do gloriosíssimo patriarca S. Bernardo, singular herdeira de seu ardentíssimo espírito, e digníssimo exemplar de todas as que vestem e professam o mesmo hábito. Estas santas virgens, e muitas outras, que extraordinários modos de penitências não inventaram, mais engenhosas para se martirizar a si mesmas, que os tiranos para atormentar os mártires?

É coisa digna de admiração que, padecendo os mártires pela fé e culto de Cristo, os tiranos não dessem em executar neles os mesmos tormentos da Paixão de Cristo; mas isto inventou e executou em Santa Catarina de Sena e em Santa Clara de Monte Falco o amor de seu divino Esposo. Catarina, com as chagas nas mãos, nos pés e no lado, e a coroa de espinhos na cabeça, e Clara, com todos os instrumentos da mesma Paixão do Senhor insculpidos e entalhados no coração. Até as doenças mais penosas provocavam e conseguiam, para que onde não podiam chegar as dores fabricadas da arte, penetrasse as da natureza, e não houvesse em corpos tão delicados parte alguma, dentro nem fora dos ossos, que não penasse com particular tormento. Todas as enfermidades de quantas é capaz o corpo humano, padeceu juntamente e por toda a vida, Santa Lidovina, com excesso da paciência de Jó, e afronta da indústria do demônio. Uma Cristina houve, entre as outras que, não se satisfazendo das penas desta vida, padeceu as do purgatório por muitos anos, como também Santa Teresa experimentou as do inferno. A mesma Santa Teresa dizia: Aut pati, aut mori: ou padecer, ou morrer, porque se não atrevia a viver sem padecer. E Santa Madalena de Pazzi, não sei se com maior energia: Pati, non mori: padecer sim, morrer não, porque na morte acaba-se o exercício de padecer, e na vida dura e persevera. Mas dizei-me, virgens puríssimas — ou dizei-o aos que o não sabem entender — por que fostes tão ambiciosas de penas? A vossa vida não era inculpável e inocente? As vossas almas não eram gratíssimas a Deus? Pois, porque sois tão inimigas ou tão tiranas de vossos corpos? Deixai esses rigores e essas penitências para as Teodoras e Pelágias, que foram grandes pecadoras; deixai-as para uma Maria Egipcíaca, que viveu dezessete anos em torpezas, enlaçada do demônio e sendo laço dos homens; mas vós, que não tendes pecados graves que pagar, e se alguns tivestes leves, os tendes tão abundantemente satisfeito, por que vos mortificais, por que vos afligis, por que vos martirizais com tanto excesso? Porque sabiam quão grande coisa era ser santas, e o queriam ser mais e mais.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Cartas sobre a Fé - Segunda Carta


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Por
Pe. Emmanuel-André.
COMO SE ADQUIRE A FÉ

Dissemos que a Fé é um dom de Deus. Vamos examinar como este dom tão precioso chega até nós. Para começar, notemos que este dom, sendo sobrenatural, é sempre inteiramente gratuito. Não podemos merecê-lo e nenhum homem pode merecê-lo por nós. Se ele nos vem é unicamente pelos méritos de Nosso Senhor e por pura misericórdia de Deus.

Mas como a Fé chega até nós? Para nós, que fomos batizados criancinhas, o dom da Fé nos chega no meio deste magnífico cortejo de graças que se chama Batismo. Neste momento Deus, adotando-nos como filhos, derrama em nossa alma o dom da Fé; quer dizer que ele dispõe interiormente as potências da alma, nossa inteligência e nossa vontade do modo necessário para que esta alma produza facilmente, alegremente o ato de Fé. E mais tarde, já dispondo do uso da razão, o espírito da criança poderá receber a verdade revelada, dela se alimentar e corresponder, pelo ato de Fé: Creio em Deus Pai, etc.

Assim, a criancinha batizada trás em sua alma o gosto pela verdade revelada, a inclinação para esta verdade, a necessidade desta verdade. Desta disposição, deste hábito sobrenatural a senhora fará uma justa idéia comparando-o à disposição, à inclinação natural que tem a criancinha pelo peito de sua mãe. Ela precisa dele, ela o reclama: se o encontra, está bem, se lhe é recusado será sua morte.

Do mesmo modo a criança batizada, em virtude de seu batismo, tem fome e sede de ensino cristão; ela quer seu leite, aquele do qual fala o intróito Quasimodo. É aí que está a sua vida, pois o justo vive da fé, diz a Escritura. Com instrução cristã, a criança batizada está praticando atos de fé, a fé que recebeu no seu batismo e que, pondo em prática, desenvolve; toma conhecimento de Deus seu Pai, da Igreja sua Mãe, dos santos do Paraíso que são seus pais e irmãos; exatamente como na ordem natural a criança que a senhora alimenta, sorri primeiro para sua mãe, depois para seu pai, depois para seus irmãos e depois toma conhecimento do mundo exterior e torna-se homem. Por um caminho análogo, porém superior já que sobrenatural, a criança batizada cresce como filho de Deus e de sua Igreja, e torna-se um membro vivo de Jesus Cristo sobre a terra, para ser mais tarde co-herdeiro de seus bens no Céu.

Assim veja, nós que fomos batizados criancinhas, recebemos primeiramente no Batismo a disposição de crer; depois, quando já tínhamos algum raciocínio nos deram a conhecer as verdades da Fé e começamos a praticar o ato de Fé. Deste modo recebemos primeiramente a Fé habitual, em seguida a Fé atual, quer dizer, a Fé que é exercida.

Foi segundo esta economia divina que Deus nos deu a Fé. E a fim de que possa perceber melhor a natureza deste dom, direi como ele chega por um caminho diferente até os adultos que receberam o batismo depois de terem o uso da razão. Preste atenção, porque assim receberá alguma luz sobre o dom da Fé.

Vejamos pois, a obra de um missionário entre os chineses ou os índios da América. Ele fala, não é ouvido. Fala outra vez, não é ouvido. Ah! aqueles que o escutam não são batizados, são surdos. O padre não diz, tocando-lhes as orelhas: Ephpheta! Abri-vos! como ele disse no nosso Batismo. No entanto, o homem de Deus não desanima; reza, pede a Deus a graça da Fé para seus pobres infelizes, fala de novo. Duas ou três pobres almas parecem escutar com atenção; ele percebe, vai até elas, elas vêem a ele. Deus lhes deu um bom impulso para a Fé. Ah! como é precioso esse impulso; será a salvação dessas almas se forem fiéis; se porem deixarem de lado esta graça, de cujo valor nem desconfiam, será a perdição eterna. Mas elas ouvem com uma atenção incomparável e vão gostando dos ensinamentos que lhes são dados pouco a pouco. Se lhes fosse dada uma luz muito grande, elas recuariam apavoradas; o padre mede os termos, proporciona a alimentação à fraqueza do doente; reza e com a ajuda de Deus, o infiel recebe algumas verdades da Fé; faz um ato de adesão a estas verdades que já conhece; e a medida que faz estes atos cresce nele a disposição de crer. Enfim o infiel está pronto para receber toda a verdade, ele pede a Deus o dom da Fé. Chega o dia do batismo, e Deus lhe dá a graça habitual da Fé pela qual já havia feito alguns atos antes do batismo.

Veja então, como custa ao dom da Fé entrar na alma de um adulto. Alem das dificuldades criadas pelo pecado original, ainda as há resultantes dos pecados pessoais, dos preconceitos da nação, da família, etc. etc. Mas nenhuma destas dificuldades existe com as criancinhas batizadas. A criança recebe a graça do alto antes de ter tocado neste mundo daqui de baixo; e assim nunca poderemos agradecer suficientemente a Deus a graça de termos sido batizados ainda criancinhas.

Continua...

Virtude: torna melhor o homem e ótima a sua ação!



Prof. Dr. Paulo Faitanin/UFF

1. O que é virtude: Denomina-se virtude o hábito operativo bom [STh.I-II,q55,a3,c] e vício o hábito operativo mau [STh.I-II,q71,a1,c]. Hábito é ação voluntária e livre que se repete. A virtude como disposição habitual reveste a natureza de quem opera, de tal modo, que imprimi nela uma força, daí virtude, de difícil remoção, que realiza melhor a perfeição que existe na natureza e torna melhor a operação de quem a possui [CG.I,37,n2;STh.I-II,q20,a3,obj2;STh.II-II,q55,a3,sc]. Por isso, a virtude torna melhor quem a possui e dispõe quem a possui para a boa operação [CG.IV,7;STh.I-II,q55,a1,c;STh.II-II,q144,a1,c;CG.I,92; In III Sent.d23,qq1,a2,qc1,c]. Mas o mesmo se diz do vício que, sendo um hábito mau, imprime na natureza de quem o possui, uma má disposição, enquanto lhe priva de algum bem ou perfeição natural. Este hábito é de difícil remoção e cada vez mais pela força que adquire dificulta e até impossibilita a realização ou a aquisição de algum bem ou perfeição natural próprio ou que lhe convenha. Este hábito porque opera contra a natureza é anti-natural. E porque este hábito se realiza mediante algum ato, operação, diz-se que sua repetição torna pior o ato e, por sua vez, a natureza de quem possui este hábito mau.

2. A virtude aperfeiçoa quem a possui: De qualquer maneira, é mais fácil adquirir um hábito bom do que remover um hábito mal, justamente por causa da influência das paixões sobre o voluntário; e isso se confirma ao constatarmos que as paixões são iminentes e muito dependentes frente àquilo que as experiências sensíveis, rotineiramente, nelas causam inclinação ou aversão. São propriedades das virtudes: (1) ser o justo meio termo entre o excesso e a deficiência; (2) tornar a ação fácil e deleitável; (3) relacionar-se com outras virtudes e com o fim último e (4) não se verter em mal. As virtudes morais são adquiridas pela repetição dos atos. Regra que, também, vale e se aplica aos vícios. Neste sentido temos: o ato repetido gera o hábito e o hábito, segundo o bem ou o mal, gera ou a virtude ou o vício. E porque a ação humana pode ser a nível especulativo ou prático, há, por isso, os hábitos especulativos e os práticos e, do mesmo modo, as virtudes e os vícios especulativos e práticos.(a reta razão do agir).

3. Tipos de virtudes: Falemos, pois, dos tipos de virtudes. As virtudes se dividem em virtudes intelectuais, que pelo hábito dos princípios da razão teórica, adquirem ou realizam algum bem ou perfeição do intelecto; e em virtudes morais, que pelo hábito dos princípios da razão prática, adquirem ou realizam algum bem ou perfeição da vontade e dos apetites sensíveis que são: concupiscível e irascível. As virtudes intelectuais se dividem em especulativas e práticas. A virtude intelectual especulativa inclina o intelecto, perfeitamente, para a verdade universal e são três: o intelecto (hábito dos primeiros princípios especulativos, que orienta o homem para a verdade, evitando o erro e o engano), a sindéresis (hábito dos primeiros princípios práticos, que incliva o homem para a busca do bem, na medida em que evita o mal) e a sabedoria (hábito de considerar a realidade por sua causalidade última, na medida em que não procura o conhecimento das coisas pelas coisas, mas pelo que elas indicam para além de si, para o que o transcende). A virtude intelectual prática inclina o intelecto para o reto juízo, aqui e agora, acerca da ação particular. São virtudes intelectuais práticas a arte (a reta razão do fazer ) e a prudênciaAs virtudes morais se dividem em quatro virtudes, ditas cardeais, visto que sobre elas se fundam outras virtudes: a prudência, que é virtude racional por essência e se dispõe a aperfeiçoar a razão; a justiça, que é racional por participação e dispõe ordenar a vontade; a fortaleza, que modera o apetite sensitivo irascível e a temperança, que modera o apetite sensitivo concupiscível. Como regra geral, a importância da virtude está em que ela torna bom aquele que a possui e boa a obra que ele faz [STh. II-II,q47,a4,c]. Como regra geral, a importância da virtude está em que ela torna bom aquele que a possui e boa a obra que ele faz [Sum. Theo. II-II,q47,a4,c].

Aquinate

Sermão de Todos os Santos (07 de 11)

VII

Os santos doutores, esquadrão também laureado, não fizeram ou não se desfizeram menos por ser santos. Foram a luz do mundo e o sal da terra, e assim como a tocha se consome para alumiar, e o sal se derrete para conservar, assim eles, para alumiar as cegueiras do mundo, e conservar a fé e religião em sua pureza, não só se pode dizer com verdade que consumiram a vida, mas que derreteram e estilaram a alma. Todos esses livros, tantos e tão admiráveis de S. Basílio, de S. Crisóstomo, de Santo Atanásio, de Santo Ambrósio, de S. Jerônimo, de Santo Agostinho e dos dois Gregórios, quatro doutores da Igreja grega e quatro da latina, e os dois que depois se acrescentaram a este sagrado número, Santo Tomás e S. Boaventura, os livros igualmente doutíssimos dos santos bispos, Hilário, Cipriano, Fulgêncio, Epifânio, Isidoro, e um e outro Cirilo, e os dos antiquíssimos padres Clemente Romano, Dionísio Areopagita, Erineu, Justino, Gregório Taumaturgo, Clemente Alexandrino, Lactâncio, e infinitos outros, todos estes escritos, digo, cheios de divina e celestial doutrina, que outra coisa são, sem encarecimento nem metáfora, senão as almas dos mesmos santos, e as quinta-essências dos seus entendimentos estiladas pela pena?

Ali se vêem refutadas e convencidas todas as seitas dos antigos filósofos pitagóricos, platônicos, cínicos, peripatéticos, epicureus, estóicos; ali os mistérios profundíssimos da fé facilitados e críveis, e os argumentos contrários desvanecidos; ali as tradições apostólicas sucessivamente continuadas, e as definições dos concílios gerais e particulares estabelecidas; ali as dificuldades da Sagrada Escritura e os lugares escuros dela declarados, e o Velho e Novo Testamento, e os Evangelhos entre si concordes; ali as questões altíssimas da Teologia sutilissimamente disputadas e resolutas, as controvérsias debatidas e examinadas, e o certo como certo, o falso como falso, e o provável como provável, tudo decidido; ali as heresias antigas e modernas expugnadas, e as cavilações dos hereges desfeitas, e os textos sagrados, corruptos e adulterados por eles, conservados em sua original pureza; os Ários, os Apolinares, os Macedônios, os Nestórios, os Donatos, os Pelágios, os Maniqueus, os Eutíquios, os Elvídios, os Jovinianos, os Vigilâncios, e os Luteros e Calvinos, que em nossos tempos os ressuscitaram, sepultados outra vez e convencidos; ali, finalmente, os vícios perseguidos, os abusos emendados, as virtudes sinceras e sólidas louvadas, as falsas e aparentes confundidas, e toda a perfeição evangélica digesta, praticada e posta em seu ponto.

E para tudo isto — que muitos não entendem, nem capacitam — que compreensão e vastidão de todas as ciências divinas e humanas era necessária; que memória de todas as histórias sagradas e profanas; que escrutínio da cronologia de todos os tempos; que notícias de todas as terras e gentes, de suas leis, costumes, cerimônias, ritos; que inteligência e conhecimento exato de todas as línguas, latina, grega, hebréia, caldaica, siríaca, umas originais dos textos sagrados, outras em que foram vertidos! E que estudo, que aplicação, que continuação e trabalho era outrossim necessário para adquirir esta imensa erudição, ajudado o engenho natural e elevado de contínuas orações ao céu, donde vem a verdadeira luz! Estas eram as minas em que cavavam e suavam aqueles diligentíssimos e utilíssimos operários, estas as riquezas inestimáveis que metiam e acumulavam nos tesouros da Igreja, estas as armas finíssimas e escudos impenetráveis de que forneciam a Torre de Davi para as futuras ocasiões e batalhas, como hoje se experimenta, empregando e aplicando a estas — que com razão se chamam obras -todas as forças do espírito, todas as potências da alma, e todos os sentidos do corpo, negando-lhe o descanso de dia, e o repouso e sono de noite, e chegando a não gostar nem sentir o mesmo que comiam, como à mesa de el-rei S. Luís de França lhe aconteceu a Santo Tomás. Mas, como eram tão doutos e sábios, sabiam melhor que todos quão grande coisa é ser santos, e por isso o procuravam eles ser com esta vida, e que os demais o fossem com esta mesma doutrina.

Por outro caminho bem diverso conquistaram o ser santos os anacoretas, deixando o trato e comunicação das gentes, e indo-se viver aos desertos; mas também lá lhes não faltaram batalhas, porque se levavam a si consigo, nem vitórias, porque os levava Deus. Estas eram as plantas do céu, de que estavam cultivados os ermos da Palestina, da Tebaida, do Egito, e aqui viviam como anjos, porque souberam fugir dos homens, os Paulos, os Hilariões, os Arsênios, os Onofres, os Pacômios, os Macários. Em muitos anos, e alguns em toda a vida, não se viam; eram porém muito para ver aquelas veneráveis cás nunca tocadas de ferro, como nazareus da lei da graça, da qual de noventa, qual de cento, qual de cento e vinte anos, estendendo o jejum e a abstinência as vidas, que tanto desbarata e abrevia o regalo. Habitavam as grutas e covas, das quais, quando saíam, mais pareciam cadáveres que homens vivos. Das mãos de S. Pedro de Alcântara escreve Santa Teresa que eram como feitas de raízes, e o mesmo podemos dizer das estátuas ou semelhanças destes santos velhos, secos, pálidos, mirrados, e como feitos ou tecidos das raízes das mesmas ervas de que se sustentavam.

Mas como na carne enfraquecida e debilitada com as penitências se criam e crescem os mais robustos espíritos, invejosos os do inferno de tanta santidade, se armavam fortemente contra eles, e, fazendo daqueles desertos campanha, lhes davam crudelíssimos combates. Umas vezes lhes apareciam os demônios transfigurados em áspides, basiliscos, dragões, e outros monstros horrendos que os queriam tragar, como ao grande Antônio; outras os assombravam com tremores espantosos da terra, relâmpagos, trovões e raios, com que parecia que as mesmas grutas se partiam, e caíam sobre eles os montes; e talvez na maior serenidade e frescura do ar, lhes traziam e punham diante dos olhos as mesmas figuras humanas de que tinham fugido, mais capazes pelo gesto e pelos trajos de provocar amor que medo; e estes eram entre todos os mais apertados e furiosos assaltos. Mas, que faziam aqueles constantíssimos atletas da castidade, quando os cilícios, de que sempre andavam armados, lhes não bastavam? Ou se valiam dos lagos e rios enregelados, como S. Francisco, ou nas silvas e espinhos, como São Bento, ou no fogo, metendo nele a mão e deixando derreter os dedos, como S. Diogo, e desta sorte, com a memória do mesmo inferno que lhes fazia a guerra, o venciam e triunfavam dele. Assim venciam, porque eram assistidos da graça de Deus, e assistia-os Deus tão eficazmente com sua graça, porque eles continuamente assistiam também a Deus, orando e contemplando.

De alguns se escreve que de noite mediam as horas da oração com um novo e admirável relógio do sol, porque começavam a orar quando se punha, e acabavam quando nascia. Mais fazia Simeão Estilita, a quem com razão podemos chamar Anacoreta do Ar, e não da terra. Vivia sobre uma coluna de trinta e cinco côvados de alto, onde perseverou oitenta anos ao sol, ao frio, à neve, aos ventos, comendo uma só vez na semana, e orando de dia e de noite, quase sem dormir. Umas vezes orava de joelhos e prostrado, outras em pé e com os braços abertos, e nesta postura estava reverenciando continuamente a Deus com tão profundas inclinações, que dobrava a cabeça até os artelhos. Teodoreto, testemunha de vista, quis saber o número a estas inclinações, e tendo contado mil duzentas e quarenta e quatro, cansado de contar, não foi por diante. Oh! assombro! Oh! prodígio! Oh! exemplo singularíssimo do que pode a fraqueza do nosso barro fortalecida da graça! Um tal gênero de vida, mais foi admirável que imitável. Mas o que mais admira, é que lhe não faltaram imitadores. Estilita quer dizer o habitador da coluna, e houve outro estilita, também Simeão, e outro estilita, Daniel, e outros. Tanto preço tem, nos que o sabem avaliar, o ser santo.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (06 de 11)

VI

Vamos aos homens, e perguntai a todos os que estão no céu que coisa é ser santos? A esta pergunta não quero responder com Escrituras nem com palavras, senão com obras. As coisas estimam-se pelo que valem e pelo que custam. Tudo o que fizeram e padeceram os santos, foi por ser santos. A esperança tão longa e tão constante dos patriarcas, a fé e paciência dos profetas, o zelo e pregação dos apóstolos, os tormentos e mortes dos mártires, as penitências e asperezas dos confessores, a continência e pureza das virgens: tudo santo, e tudo por ser santos. Mas não é esta a matéria que se haja de passar e escurecer com uma tão abreviada generalidade. Discorramos por cada uma das hierarquias dos santos, e vejamos quanto se empenharam por conseguir este nome.

Olhai para os patriarcas nos dois primeiros, e vereis a Isac lançado sobre a lenha, esperando com a garganta nua o rigor, por não dizer a desumanidade do golpe, e a Abraão com a espada em uma mão, para cortar a cabeça ao único filho, e como fogo na outra, para o queimar em holocausto e sepultar em cinzas. Podia haver maior resolução, nem mais heróico e deliberado empenho, assim na sujeição do filho ao pai, como na obediência do pai a Deus? O mesmo Deus confessou que não podia ser maior. Mas, se virdes que um anjo naquele mesmo flagrante tem mão no braço a Abraão, voltai os olhos para o de Jefté, armado doutra espada e do mesmo zelo, e vereis não suspenso, mas, executado o tremendo sacrifício, derramando o pai animoso com suas próprias mãos o sangue da inocente filha, também única, e sem herdeiro. E por que vos parece que se atreveram estes dois homens a uma tão espantosa e medonha ação, de que se estremece o amor e tapa os olhos a natureza? Abraão, por não quebrar um preceito, Jefté, por não faltar a um voto, e ambos por ser santos. Abraão podia duvidar, com grande fundamento, se um preceito tão novo e inaudito, e tão repugnante às promessas que o mesmo Deus lhe tinha feito, era ilusão; Jefté, com maior razão ainda, podia duvidar se o voto naquele caso obrigava, não sendo tal a sua tenção, nem lhe tendo vindo tal coisa ao pensamento; e, contudo, ambos seguiram a parte mais dificultosa e mais segura, por não deixar em escrúpulo a salvação, nem pôr em dúvida o ser santos.

Aos patriarcas seguem-se os profetas, e aos profetas os apóstolos. E se entre os profetas vos assombrais de ver um Isaías serrado pelo meio, e um Daniel na cova dos leões, e um Jonas engolido da baleia, nos apóstolos, que foram menos em número, vereis a Pedro crucificado, a Paulo degolado, a André aspado, a Felipe apedrejado, a Bartolomeu esfolado, a Mateus e Tomé alanceados, a Simão e Tadeu espedaçados, e todos, enfim, dando o sangue e a vida em testemunho da fé que pregaram, não só para ser santos eles em si, mas para fazer santos a outros.

E que direi eu de vós, ó fortíssimo e luzidíssimo exército dos mártires, tão infinito no número como nos esquisitos gêneros de martírios? Se entro no anfiteatro de Roma, vejo-vos lançados às feras, ou lançados aos Neros, aos Décios, aos Dioclecianos, aos Trajanos, mais feros que as mesmas feras. A muitos de vós reverenciaram os leões, os ursos, os tigres, mas a nenhum perdoou a vida a impiedade mais que brutal dos tiranos, sempre mais obstinados e furiosos. As pedras de Estêvão, as setas de Sebastião, as grelhas de Lourenço e Vicente já eram tormentos vulgares. Que máquinas e invenções de atormentar não excogitou a sevícia raivosa de se ver vencida, para combater e tentar vossa fortaleza? A uns mártires penduravam pelos cabelos, ou por um pé, ou por ambos, ou pelos dedos polegares, e assim, no ar e despidos, com azorragues de nervos rematados em pelotas de chumbo ou abrolhos de aço, os batiam e martelavam com tal força e continuação os cruéis e robustos algozes, que ao princípio açoitavam corpos, depois feriam as mesmas chagas ou uma só chaga, até que não tinham já que açoitar nem ferir. A outros, estirados e desconjuntados no ecúleo, ou estendidos na catasta, aravam ou cardavam os membros com pentes e garfos de ferro, a que propriamente chamavam escorpiões, ou metidos debaixo de grandes pedras de moinho, lhes espremiam como em lagar o sangue, e lhes moíam e emprensavam os ossos, até ficarem uma pasta confusa, sem figura nem semelhança do que dantes eram. A outros cobriam todos de pez, resina e enxofre, e, ateando-lhes o fogo, os faziam arder em pé como tochas ou luminárias nas festas dos ídolos, esforçando-se para este suplício com lhes dar a beber chumbo derretido. A outros, nos mais rigorosos frios do inverno, metiam em tanques enregelados, com banhos de água quente à vista, e liberdade de se passarem a eles, para que enfraquecesse o remédio os que não vencia o tormento. A outros coziam em couros, juntamente com serpentes e cães danados, e assim os lançavam ao mar, para que naquela estreita, medonha e asquerosa prisão, primeiro acabassem mordidos e atassalhados dos dentes venenosos, do que afogados das ondas. A outros escalavam vivos pelos peitos, e lhes arrancavam o coração e entranhas palpitantes, ou lhes atavam as mãos e os pés a quatro ramos grossos de árvores, dobrados a força e soltos ao mesmo tempo, com que súbita e violentissimamente os espedaçavam em quartos. A outros assentavam em cadeiras de ferro afogueado, a outros faziam andar descalços sobre lâminas ardentes, a outros metiam em caldeiras de azeite e alcatrão fervendo, a outros em bois de metal abrasado, a outros em fornalhas de chamas vivas. E tudo isto sofriam e suportavam aqueles valorosos cavaleiros de Cristo, não só com paciência e constância, mas com júbilo e alegria. Por quê? Só por ser e segurar o ser santos, como exclama a Igreja: Omnes sancti, quanta passi sunt tormenta, ut securi pervenirent ad palmam martyrii.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (05 de 11)

V

Os anjos, que são a terceira classe dos santos que hoje celebra a Igreja, assim como nos persuadem com suas inspirações, nos ensinam com seu exemplo quão grande coisa é ser santos. O exercício dos anjos no céu é estarem sempre louvando a Deus. Nós não o sabemos louvar, porque o não vemos; eles, que o estão sempre vendo, só o louvam como devem. Mas, quais são os louvores, ou as lisonjas que os anjos cantam a Deus? O profeta Isaías, que uma vez foi admitido a os ouvir, o disse: Seraphim stabant, et clamabant alter ad alterum: Sanctus, Sanctus, Sanctus (Is. 6,2s): Estavam os serafins divididos em dois coros, e o que cantavam alternadamente a grandes vozes, era: Santo, Santo, Santo. — Isto diziam e repetiam sem cessar, como também os ouviu, daí a oitocentos anos, S. João no seu Apocalipse: Et requiem non habebant, dicentia: Sanctus, Sanctus, Sanctus (9). Se isto não estivera tão expresso em um e outro testamento, quem tal cuidara? Deus não é um objeto imenso, as grandezas de Deus não são infinitas, os anjos que o vêem e conhecem intuitivamente não são tão entendidos e tão sábios? Pois, como não variam de vozes nem de pensamento? Por que não discorrem por outras perfeições divinas, por que não louvam e não engrandecem outros atributos? Por isso mesmo. Porque vêem a Deus, porque o conhecem, e porque são entendidos. Quem louva ou lisonjeia discretamente, diz tudo o que pode e tudo o que mais agrada, e a maior grandeza que se pode dizer de Deus, e o louvor que mais lhe agrada é chamar-lhe Santo. Por isso o primeiro coro dos anjos diz Santo, e o segundo responde Santo; o primeiro torna a dizer Santo, e o segundo torna a repetir Santo; e isto dizem, e isto sempre estão dizendo sem cessar, uma e mil vezes,e isto hão de continuar a dizer por toda a eternidade, porque, depois de dizerem que Deus é Santo, Santo e mais Santo, nem os serafins do céu, que são os anjos de mais alto entendimento e de mais profunda ciência, sabem dizer mais, nem lhes fica mais que dizer. É Deus eterno, é imenso, é infinito, é onipotente, mas tudo isso são grandezas, porque estão juntas com o ser Santo. Se Deus, por impossível, não fora Santo, todos os outros seus atributos careceram da sua maior perfeição. Por isso é perfeição em Deus o ser eterno, porque é eternamente Santo; por isso é perfeição o ser imenso, porque é imensamente Santo; por isso é perfeição o ser infinito, porque é infinitamente Santo; por isso é perfeição o ser onipotente, porque é todo-poderosamente Santo: Sanctus, Sanctus, Sanctus.

Isto é o que os anjos dizem de Deus. E de si, que dizem, ou que podem dizer? O que podem e são obrigados a dizer todos os que perseveraram no céu e o não perderam, é que todo o seu bem e toda a sua felicidade consistiu em ser santos. Houve no céu entre os anjos aquela grande batalha que sabemos: Lúcifer, com os maus, rebelou-se contra Deus; S. Miguel, com os bons, seguiu as partes de seu Senhor; estes venceram, aqueles foram vencidos, e que ganharam os que ganharam a vitória, que perderam os que perderam a batalha? Nenhuma outra coisa mais que o ser ou não ser santos. Os que ganharam a vitória ganharam o ser santos, porque ficaram confirmados em graça; os que perderam a batalha perderam o ser santos, porque foram privados da mesma graça, e em tudo o mais que tinham por natureza ficaram como dantes eram.

Daqui se entenderá um famoso lugar de Ezequiel no capítulo vinte e oito, onde chama querubim a Lúcifer: Tu Cherub extentus, et protegens, et posui te in monte sancto Dei, in medio lapidum ignitorum ambulasti. Perfectus in viis tuis a die conditionis tuae, donec inventa est inquitas in te (10): Tu, ó querubim, eras o anjo de maior esfera, e que debaixo de tuas asas tinhas todos os outros:Tu Cherub extentus, et protegens. Eu te criei Santo e em graça, e te pus no céu: Posui te in monte sancto. Tu estavas entre os serafins, onde passeavas com liberdade de superior: In medio lapidum ignitorum ambulasti. E desde o dia de tua criação foste perfeito, até que em ti se achou o pecado e maldade, que tu inventaste: Perfectus in viis tuis, donec inventa est inquitas in te. Em suma, que Lúcifer, como diz o texto, e declaram conformemente todos os Padres, era por natureza serafim, e criado entre os serafins, e superior a todos. Pois, se era serafim, como lhe chama o profeta, em nome de Deus, não serafim, senão querubim? E se lhe nega o nome de serafim, porque já não era anjo, senão demônio, por que lhe chama querubim: Tu Cherub? Porque serafim significa amor e amante, e querubim significa ciência e sábio; e ainda que Lúcifer, pela rebelião e pelo pecado, perdeu o amor e a graça de Deus e os outros dons sobrenaturais, não perdeu a sabedoria e as ciências, nem os outros dotes do entendimento e da natureza, com que fora criado. Tão anjo ficou no saber, como dantes era, tão anjo no poder, tão anjo na capacidade da esfera, tão anjo na beleza e formosura natural, e em tudo o mais como dantes, e somente privado da graça e da santidade, em que por sua culpa e maldade se não quis conservar.

De sorte que a principal diferença que então houve e hoje há entre Miguel e Lúcifer, é que Miguel chama-se S. Miguel, e Lúcifer não se chama santo. Direis que também foi privado Lúcifer da glória e da vista de Deus. Não foi, porque essa ainda a não tinha, que se já tivera visto a Deus não o pudera ofender nem perder a graça e santidade. Mas, assim como Deus o privou da graça e da santidade, por que o não privou também de tudo o mais? Quando um vassalo se rebela contra seu rei, confiscam-lhe todos seus bens. Pois, se Lúcifer se rebelou contra Deus, por que lhe confiscam só a graça e a santidade, e lhe deixam tudo o mais? Porque só a graça e a santidade são bens: tudo o mais que têm os anjos maus, uma vez que não têm santidade, antes são males que bens. A ciência, sem santidade, é ignorância; a formosura, sem santidade, é fealdade; o poder, sem santidade, é fraqueza; a grandeza, sem santidade, é miséria; e por isso são os anjos maus os mais miseráveis de todas as criaturas, assim como os anjos bons os mais felizes e bem-aventurados de todas: estes porque são santos, aqueles porque não são santos.

Notas:
(9) E não cessavam de dizer: Santo, Santo, Santo (Apc. 4,8).

(10) Tu eras um querubim que estendia as tuas asas e protegia, e eu te pus sobre o monte santo de Deus, tu andaste no meio das pedras incendidas. Tu eras perfeito nos teus caminhos desde o dia da tua criação, até que a iniqüidade se achou em ti (Ez. 28,14 s).

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (4 de 11)

IV

Depois do Padre, Filho e Espírito Santo, segue-se a Filha do Padre, a Mãe do Filho, a Esposa do Espírito Santo, a Virgem Santíssima, a qual como a mais santa entre todas as mais puras criaturas nos dirá melhor que todas quão grande bem é sermos santos. No capítulo vinte e quatro do Eclesiástico nos refere a mesma Senhora como Deus, que a escolheu por morada, lhe deu a herança de tudo quanto tinha vinculado ao povo de Israel, que era o morgado do mesmo Deus: Tunc praecepit et dixit mihi creator omnium; et qui creavit me requievit in tabernaculo meo, ei dixit mihi: In Israel haereditare (7). E que vos parece que escolheria e tomaria para si a Virgem Maria de toda a universidade de bens naturais e sobrenaturais deste imenso morgado? Só tomou o que era santo, e nenhuma outra coisa. Do que não era santo, posto que fosse precioso e estimado, não quis nada, porque tudo é nada; do que era santo, tomou tudo, porque só o ser santo é tudo. Ouçamos a mesma Senhora, e ponderemos o que diz com a atenção que suas palavras merecem. Primeiramente, do que pertence ao lugar, diz que escolhe uma cidade santa e uma casa santa, para nela servir a Deus em sua presença, sem nenhum outro cuidado: In habitatione sancta coram ipso ministravi, et in civitate sanctificata similiter requievi (8). E quanto ao que pertencia à pessoa, sendo tantos e tão excelentes os dotes naturais que Deus desde seu princípio tinha repartido com as mulheres famosas daquela nação, de tudo isto nenhum caso fez a Senhora, tudo deixou, tudo desprezou, e só tomou e quis para si a santidade de todos os santos: In plenitudine sanctorum detentio mea (Eclo. 24, 16): Detive-me — diz — na enchente de todos os santos — porque tudo o que não é ser santo pode inchar, mas não pode encher — aqui me detive, aqui parei, aqui insisti e não passei, nem tive para onde passar daqui.

Oh! quem me dera ter neste auditório todas as senhoras do mundo, tão prendadas e tão presas, tão tidas e tão retidas das vaidades do mesmo mundo, para que vissem o de que só se haviam de deixar prender e deter, à imitação da maior Senhora e Rainha de todas! Tudo quanto a apreensão e fantasia feminil estima e preza, viu a benditíssima Virgem no grande teatro de Israel, de que Deus a fizera herdeira: In Israel haereditare. Viu a nobreza do sangue, antiga e ilustre em Sara, soberana e real em Micol, mas não a deteve o esplendor da nobreza, nem lhe moveu ou alterou os espíritos. Viu a formosura servida e adorada em Raquel, buscada e preferida em Abisai, mas não a deteve a formosura, nem julgou por digna de ser vista a que leva após si os olhos. Viu a fecundidade grande e invejada em Lia, maior e mais desvanecida em Fenena, mas não a deteve o apetite natural de ser mãe, nem desejou perpetuar-se em mais vidas. Viu a riqueza doméstica em Rebeca, e os tesouros reais em Sulamites, mas não a deteve cobiça ou ambição de riquezas, porque tinha o coração em outros tesouros. Viu as galas e afeitas de Jesabel, e todo o valor do Oriente engastado nas jóias de Ester, mas não a deteve a aparência vã dos aparatos do corpo, como a que só cuidava em ornar o espírito. Viu a que o mundo chama ventura nas bodas não esperadas de Rute, e nas muito mais venturosas de Séfora, mas não a deteve o especioso laço das bodas, antes lhe fizeram horror as delícias do tálamo. Viu as vitórias e triunfos de Débora, e os despojos e troféus da famosa Judite, mas não a deteve a fama com o ruído de seus aplausos, nem afetou vitórias e triunfos. Viu, finalmente, coroada Abigail, e assentada Bersabée em igual trono com Salomão, mas não a deteve a soberania daquelas alturas, porque era mais alto o seu ânimo que os tronos, e de maior esfera que as coroas.

Pois, Senhora, se todos estes bens da natureza e da fortuna, se todas estas grandezas e felicidades da vida, que os homens tanto estimam, tanto prezam e tanto invejam, nem divididas, nem juntas vos encheram os olhos, se por todas passastes pisando-as, e nenhuma vos pareceu digna, nem de vos deter um momento, nem de vos fazer parar um passo, que é o que vistes, que só vos agradou, que é o que vistes, que só vos deteve ou teve mão, para que ali parassem os passos do vosso desejo, para que dali não passassem os vossos afetos? Vi a humildade, diz a Senhora, vi o desprezo de si e do mundo, vi o recolhimento, vi o silêncio, vi a modéstia, vi a temperança, vi a paciência, vi a fortaleza, vi a mortificação das paixões e a resignação da própria vontade, vi o amor de Deus e a caridade do próximo, vi, enfim, toda a santidade, virtudes e graça de que estiveram cheios os santos, e nesta enchente de santidade é que só tomei pé, nesta parei, nesta me detive e nesta me desenho: Et in plenitudine sanctorum detentio mea. Isto é o que diz de si a Mãe de Deus. E porque este foi o seu juízo e a sua eleição, por isso foi Mãe de Deus, não só porque estimou o ser santa mais que todas as coisas, mas porque deixou e desprezou todas as coisas para ser mais santa.

Notas:

(7) Então o Criador de tudo deu-me os seus preceitos, e falou-me, e aquele que me criou descansou no meu tabernáculo, e disse-me: Possui a tua herança em Israel (Eclo. 24,12 s).

(8) Exerci diante dele o meu ministério na morada santa, e repousei na Cidade Santa (Eclo. 24, 14 s).

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (03 de 11)

III

Por tão altos e tão admiráveis termos como estes nos ensinou Deus em comum quão grande coisa seja o ser santos, e o mesmo documento confirmou cada uma das três Pessoas divinas em particular, por exemplos não menos maravilhosos. — Sobre a Encarnação da Pessoa do Filho mandou o Eterno Padre por embaixador o anjo S. Gabriel, e o que lhe deu por instrução que dissesse de sua parte à Virgem Santíssima, foi que o Filho de Deus e seu, que de suas entranhas havia de nascer, seria santo: Ideoque, et quod nascetur ex te sanctum, vocabitur Filius Dei (4). De sorte que, tendo o Eterno Padre um Filho igual a si mesmo, e querendo que por segunda geração e segundo nascimento, sendo Deus, fosse também homem, o que lhe deu a ele, e o que prometeu à sua Mãe, foi que seria santo: Quod nascetur ex te sanctum. Notai o sanctum e o ex te: santo, e de vós. Não lhe deu riquezas, porque o fez Filho de uma Mãe muito pobre: ex te; não lhe deu honras, porque o fez Filho de uma Mãe muito humilde: ex te; não lhe deu mandos, nem dignidades, nem impérios temporais, porque, ainda que a Virgem era descendente de reis, todos esses cetros e coroas tinham já degenerado aos instrumentos mecânicos de um oficial, com quem era desposada: ex te. E, que lhe deu? Deu-lhe o ser santo: Quo nascetur ex te sanctum. Pois a seu Filho não lhe daria outra coisa um Pai onipotente? Os pais, tudo quanto têm e tudo quanto podem, dão a seus filhos, e mais, se são primogênitos e únicos, como Cristo era. Pois a um Filho primogênito, a um Filho único, um Pai todo-poderoso, um Pai Deus e Senhor de tudo, não lhe dá outra coisa mais que o ser santo? Não, e por isso mesmo. Ao Filho primogênito e único do Eterno Padre competia-lhe a herança de todos os bens de seu pai; e todos os bens que Deus tem, e todos os que pode dar, é fazer a um homem santo e mais santo, porque tudo o mais, ou não é nada, ou, para ser alguma coisa, há de ser também santificado e santo. Enquanto Filho, herdeiro de sua Mãe, pertenciam-lhe ao mesmo Cristo o cetro de Davi e a casa de Jacó, que também Deus lhe mandou prometer: Dabit illi sedem David patris ejus, et regnabit in domo Jacob (5); mas essa mesma casa e esse mesmo cetro deu-lhe Deus a seu Filho por tal modo que, de temporal que era, o converteu em espiritual, para que tudo nele fosse só santidade, e ele, por todos os modos, mais e mais santo.

Vede como dizem o que digo, os que viram o mesmo Unigênito do Padre: Vidimus gloriam ejus, gloriam quasi unigeniti a Patre, plenum gratiae et veritatis (6): Vimos — diz S. João — a sua glória, a sua majestade, a sua grandeza, e bem mostrava que era glória, que era majestade, que era grandeza de Filho Unigênito do Eterno Padre. — E em que consistia essa glória, essa majestade e essa grandeza? Plenum gratiae et veritatis: em ser cheio de graça e de verdade. — A graça é a santidade formal, ou a forma santificante, que faz e denomina santos; e nesta graça, nesta santidade, neste ser santo consistia toda a glória, toda a grandeza e toda a majestade do único herdeiro do Padre. E se perguntardes ao evangelista a razão de serem só estes os bens que contém a herança de um Pai todo-poderoso e Senhor de tudo, o mesmo evangelista tem já dado a razão nas mesmas palavras: Plenum gratiae et veritatis: cheio de graça e de verdade. Porque tudo o que não é graça de Deus e santidade, é mentira. As riquezas mentira, as honras mentira, os mandos mentira: só o estar em graça de Deus é verdade, só o viver em graça de Deus é verdade, só o morrer em graça de Deus, em que consiste o ser santo, é verdade: Plenum gratiae et veritatis. Isto deu o Eterno Padre a seu Filho, para que vós aprendais a saber o que haveis de procurar aos vossos. Procurai-lhes que sejam santos, e esta é a maior riqueza, a maior honra, a maior felicidade que lhes podeis alcançar, e os maiores e só verdadeiros bens de que os podeis deixar por herdeiros.

Vamos à Pessoa do Filho. A Pessoa do Filho é a Sabedoria de Deus. Fez-se homem a Sabedoria Divina, veio ao mundo para ensinar aos homens, e que lhes ensinou? Nenhuma outra coisa, senão a ser santos. Naquela escada de Jacó, como todos sabeis, representou-se em visão e profecia a Encarnação do Verbo Encarnado. No alto da escada estava Deus inclinado sobre ela, porque uma das Pessoas divinas havia de descer ao mundo; ao pé da escada estava Jacó, que era o homem, ou o gênero humano, porque o modo com que Deus havia de descer era encarnando e fazendo-se homem; e a escada chegava da terra ao céu, porque o fim do mistério da Encarnação, e o fim por que Deus desceu do céu à terra, foi para ensinar e mostrar ao homem como havia de subir da terra ao céu. E para esta subida tão notável e tão nova, que até então estava ignorada, que é o que ensinou o Deus que desceu e encarnou, que é o que ensinou o Verbo e a Sabedoria divina a Jacó, ou ao homem, que nele se representava? O mesmo Verbo o diz no capítulo décimo da mesma Sabedoria, falando do mesmo Jacó: Ostendit illi regnum Dei, et dedit illi scientiam sanctorum (Sab. 10,10): Mostrou-lhe o céu e o reino de Deus, e ensinou-lhe a ciência de ser santo. — De sorte que, vindo a Sabedoria divina em pessoa, e descendo do céu à terra a ser Mestre dos homens, a nova cadeira que instituiu nesta grande universidade do mundo, a ciência que professou, foi só ensinar a ser santos, e nenhuma outra. A Retórica deixou-a aos Túlios e aos Demóstenes: a Filosofia aos Platões e aos Aristóteles; as Matemáticas aos Tolomeus e aos Euclides; a Medicina aos Apolos e aos Esculápios; a Jurisprudência aos Solões e aos Licurgos: e para si tomou só a ciência de ensinar a salvar e fazer santos: Regnum Dei, et scientiam sanctorum.

Em todas as ciências, é certo que há muitos erros, dos quais nasce a diferença das opiniões; em todas as ciências há muitas ignorâncias, as quais confessam todos os maiores letrados que não compreendem nem alcançam. Pois, se vinha a Sabedoria de Deus ao mundo, por que não alumiou estes erros, por que não tirou estas ignorâncias? Porque errar ou acertar em todas estas matérias, sabê-las ou não as saber, nenhuma coisa importa: o que só importa é saber salvar, o que só importa é acertar a ser santos, e isto é o que só nos veio ensinar o Filho de Deus. Nem ensinou aos filósofos a composição do contínuo, nem aos geômetras a quadratura do círculo, nem aos mercantes a altura de Leste a Oeste, nem aos químicos o descobrimento da pedra filosofal, nem aos médicos as virtudes das ervas, das plantas, das pedras e dos mesmos elementos, nem aos astrólogos e astrônomos o curso, a grandeza, o número, as influências dos astros: só nos ensinou a ser humildes, só nos ensinou a ser castos, só nos ensinou a desprezar as riquezas, só nos ensinou a perdoar as injúrias, só nos ensinou a sofrer as perseguições, só nos ensinou a chorar e aborrecer os pecados, e a amar e exercitar as virtudes, porque estas são as regras e as conclusões, estes os preceitos e os teoremas por onde se aprende a ser santos, que é a ciência que professou e veio ensinar a Pessoa do Filho de Deus: Scientiam sanctorum.

A Pessoa do Espírito Santo com o seu próprio nome nos prova e confirma o mesmo. O Padre também é espírito, e também é santo. Pois, por que se chama só a terceira Pessoa Espírito Santo? A razão é — dizem todos os teólogos — porque ao Espírito Santo compete o ofício de santificar e de fazer santos. Todas as obras de Deus, que chamam ad extra, isto é, que saem de Deus e se terminam às criaturas, são indivisamente de toda a Santíssima Trindade, na qual o poder e o obrar não só é igual, senão um só e o mesmo. Mas por certa propriedade, fundada na natureza ou origem das mesmas pessoas, umas obras se atribuem a umas pessoas, e outras a outras. E porque à terceira Pessoa se atribui particularmente o santificar e fazer santos, por isso se chama Santo.

E para que vejais quão grande significação é na mesma Pessoa do Espírito o nome de Santo e o atributo ou atribuição de santificar, notai o muito que com ela se supre, e a grande carência ou vazio que com ela se enche. O nome ou antonomásia de Santo, e o ofício de santificar e fazer santos não lhe pudera competir ao Pai, que é a fonte original e irascível da santidade? Não lhe pudera competir ao Filho, que foi o que, encarnando, nos mereceu essa mesma santidade? Sim. Pois por que se deu ao Espírito Santo? Disse com alto pensamento Ruperto, que para suprir a infecundidade da terceira Pessoa. A divindade no Padre é fecunda, no Filho é fecunda, no Espírito Santo não é fecunda. No Padre é fecunda, porque gera o Filho; no Filho é fecunda, porque, juntamente com o Padre, produz o Espírito Santo; no Espírito Santo só não é fecunda, porque não produz outra Pessoa divina. Pois, que meio podia haver para suprir na terceira Pessoa esta infecundidade? O meio foi cederem nela as outras Pessoas divinas a virtude ou atribuição de santificar e fazer santos e o título e antonomásia de se chamar Santo. A terceira Pessoa não pode gerar nem produzir pessoa que seja Deus? Pois faça santos. A terceira Pessoa não se pode chamar Pai nem se pode chamar Filho? Pois chame-se Santo. Tão grande, tão alta, tão sublime, tão divina coisa é ser Santo, e com tão maravilhosos documentos nos ensinaram esta verdade em si mesmas as três Pessoas divinas.

Notas:
(4) Por isso mesmo o santo que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus (Lc. 1,35).

(5) Dar-lhe-á o trono de seu pai Davi, e reinará eternamente na casa de seu pai Jacó (Lc. 1,32).

(6) Nós vimos a sua glória, glória como de Filho unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade (Jo. 1, 14).

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (02 de 11)

II

Beati mundo corde.

A mais poderosa inclinação e o mais poderoso apetite do homem é desejar ser. Bem nos conhecia este natural o demônio, quando esta foi a primeira pedra sobre que fundou a ruína a nossos primeiros pais. A primeira coisa que lhe disse e que lhe prometeu foi que seriam: Eritis (Gên. 3,5), e este eritis, este sereis foi o que destruiu o mundo. Não está o erro em desejarem os homens ser, mas está em não desejarem ser o que importa. Uns desejam ser ricos, outros desejam ser nobres, outros desejam ser sábios, outros desejam ser poderosos, outros desejam ser conhecidos e afamados, e quase todos desejam tudo isto, e todos erram. Só uma coisa devem os homens desejar ser, que é ser santos. Assim emendou Deus o sereis do demônio com outro sereis, dizendo: Sancti eritis, quia Ego sanctus sum (2). O demônio disse: Sereis como Deus, sendo sábios; e Deus disse: Sereis como Deus, sendo santos. E vai tanto de um sereis a outro sereis, que o sereis do demônio não só nos tirou o ser como Deus, mas tirou-nos também o ser, porque nos tirou o ser santos, e o sereis de Deus, exortando-nos a ser santos, como ele é, não só nos restitui o ser como Deus, senão também o ser. Quando Moisés perguntou a Deus o que era, respondeu Deus definindo-se: Ego sum qui sum (Êx. 3,14): Eu sou o que sou — porque só Deus tem por essência o ser. Agora diz a todos os homens por boca do mesmo Moisés: Se sois tão amigos e tão ambiciosos de ser, sede santos, e sereis, porque tudo o que não é ser santo, é não ser. Sede rei, sede imperador, sede papa: se não sois santo, não sois nada. Pelo contrário, ainda que sejais a mais vil e mais desprezada criatura do mundo, se sois santo, sois tudo o que pode chegar a ser o maior e mais bem afortunado homem, porque sois como aquele que só é e só tem ser, que é Deus. Todo o outro ser, por maior que pareça, não é, porque vem a parar em não ser. Só o ser santo é o verdadeiro ser, porque é o que só é, e o que há de permanecer por toda a eternidade.

Bastava esta só razão para os homens, que temos alma imortal, desejarmos a santidade sobre todas as coisas, e desprezarmos todas as coisas só por ser santos. Mas quero que os mesmos santos e todos os santos nos ensinem e animem a esta verdade. Todos os santos quantos há e pode haver, pela mesma ordem em que hoje os celebra a Igreja, se reduzem a quatro classes. Deus, que também se preza de ser e de se chamar santo; a Mãe de Deus, que é a mais santa entre todas as puras criaturas; os santos anjos, repartidos em nove coros; os homens santos, divididos em seis hierarquias. Ora, vejamos como todos estes santos nos ensinam a estimar sobre tudo o ser santos, e comecemos por Deus.

Se perguntarmos aos teólogos qual é o maior atributo de Deus, responder-nos-ão que todos são iguais, porque todos e cada um deles é Deus. Mas se perguntarmos qual é o que mais declara e engrandece o ser do mesmo Deus, S. Dionísio Areopagita, que é o que mais altamente escreveu dos atributos divinos, diz que o ser santo: Deus per excellentiam cuncta excellentem Sanctus Sanctorum praedicatur. Quando dizemos que Deus é santo, e Santo dos Santos, louvamos em Deus uma excelência que é mais excelente que todas: Excellentiam cuncta excellentem. O grande doutor da Igreja, Santo Ambrósio, ainda disse mais, ou com maior expressão: Nihil pretiosius invenimus, quo Deus praedicare possimus, nisi ut sanctum apellemus: quodlibet aliud inferius est Deo, inferius est Domino: Quando queremos louvar e engrandecer a Deus, nenhuma coisa achamos de maior estimação e de maior preço que chamar-lhe santo, porque tudo o demais que dissermos é inferior a Deus, e só quando lhe chamamos santo dizemos o que é. Antigamente, como Deus era só conhecido em Judéia, no resto do mundo havia muitos chamados deuses, os quais todos tinham sacrifícios e sacerdotes. E que fez o verdadeiro Deus para se distinguir dos deuses falsos? Mandou que o seu Sumo Sacerdote trouxesse na testa uma lâmina de ouro com esta letra: Sanctum Domino (Êx. 28,36): A santidade ao Senhor — porque só aquele Senhor, que tem por atributo o ser santo, é o verdadeiro Deus.

Mais fizeram os profetas, os quais, falando de Deus, deixavam o nome de Deus, e o trocavam pelo nome de Santo. Lede Isaías e os demais, e achareis: Ad Sanctum Israel respicient: Blasphemaverunt Sanctum Israel: In Sancto Israel laetaberis: Venia consilium Sancti Israel (3), e assim em muitos outros lugares, não havendo panegírico, invectiva ou declamação em que não tragam sempre na boca o Santo de Israel, o Santo de Israel. E que Santo de Israel é este? É Abraão, Isaac, ou Jacó? É Moisés, Josué, ou Davi? É Elias ou Eliseu? Não. O Santo de Israel, de que falam os profetas, é Deus. Pois, se é Deus, por que lhe não chamam Deus, ou o Deus de Israel, senão o Santo de Israel? Porque em Israel havia naquele tempo muitos idólatras, que veneravam e sacrificavam aos deuses falsos da gentilidade; e para distinguir o Deus verdadeiro dos deuses falsos, não acharam os profetas outra diferença mais individual, nem outra distinção mais adequada, que chamar-lhe o Santo. Se lhe chamaram Deus, equivocava-se o nome de Deus com o dos ídolos, a quem os idólatras também chamavam deuses; mas chamando-lhe o Santo, tiravam toda a equivocação e toda a dúvida, porque só o atributo da santidade era o que distinguia e provava no Deus de Israel a única e verdadeira divindade. Tanto significa, tanto monta, e tão alta e divina coisa é, ainda no mesmo Deus, o ser santo.

Mas, se os profetas queriam distinguir o Deus verdadeiro dos falsos, por que não fundavam a distinção na verdade, senão na santidade? Por que não diziam o verdadeiro de Israel, senão o Santo de Israel? Porque, ainda que o verdadeiro se opõe formalmente ao falso, mais se qualifica o ser divino pelo atributo de santo que pelo de verdadeiro. Ouvi uma das maiores ponderações com que se pode avaliar e conhecer quão sublime e divina coisa é, ainda na estimação e veneração do mesmo Deus, o ser santo. Jurou Deus a Davi que seria o seu reino eterno, porque dele descenderia o Messias; e como fez Deus este juramento, ou por quem jurou? Coisa estupenda! Semel juravi in sancto meo, si David mentiar: semen ejus in aeternum manebit (SI. 88, 36): Jurei a Davi, pelo meu Santo, que não hei de faltar à verdade do que lhe prometi, e que há de ser pai do Messias. — In Sancto meo, pelo meu Santo! E que santo é este, pelo qual Deus jura? Já sabeis que juramento se faz sempre por aquilo que mais se venera ou mais se estima. Fora de nós, juramos pela vida de el-rei, pela cruz, por Cristo, por Deus, porque é o que mais veneramos, dentro em nós, juramos por nossa vida, por nossa alma, porque é o que mais estimamos. Da mesma maneira, não tendo Deus fora de si por quem jurar, jura pelo que tem dentro em si, e jura por si mesmo, enquanto santo, porque o ser santo é o que mais estima, o que mais preza, e, se se pode dizer assim, o que mais venera. Parece que havia Deus de jurar pela sua verdade, e jura pela sua santidade, como se ficara mais estabelecida a verdade do seu juramento na firmeza da sua santidade que da sua mesma verdade. Em Deus tudo é igual, e tão verdadeiro é como santo, e tão santo como verdadeiro; mas buscando Deus dentro de si mesmo um atributo que, ou fosse ou parecesse mais soberano e mais digno de veneração, pelo qual pudesse jurar, jurou Deus verdadeiro por Deus Santo: Semel juravi in Sancto meo.

(2) Vós sereis santos, porque eu sou santo (Lev. 11, 45).

(3) Olharão para o Santo de Israel (Is. 17,7).
— Blasfemaram o Santo de Israel (Is. 1,4).
— Alegrar-te-ás no Santo de Israel (Is. 41,16).
— Chegue-se o conselho do Santo de Israel (Is. 5,19).


segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (01 de 11)

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Postaremos também, a partir de agora, uma série contendo o "sermão de Todos os Santos" do padre António Vieira, sj. São instruções interessantes e salutares acerca do ser santo. Como ele é bastante extenso e dividido em 11 partes, as postagens serão de acordo com essas divisões feitas pelo próprio autor.
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Beati mundo corde (1).

I

A festa mais universal e a festa mais particular, a festa mais de todos e a festa mais de cada um, é a que hoje celebra e nos manda celebrar a Igreja. É a festa mais universal e mais de todos, porque, começando pela fonte de toda a santidade, que é Cristo, e pela Rainha de todos os santos, que é a Virgem Santíssima, fazemos festa hoje a todas as hierarquias dos anjos, fazemos festa aos patriarcas e aos profetas, aos apóstolos e aos mártires, aos confessores e às virgens. E não há bem-aventurado na Igreja triunfante, ou canonizado ou não canonizado, ou conhecido ou não conhecido na militante, que não tenha a sua parte ou o seu todo neste grande dia. E este mesmo dia tão universal e tão de todos, é também o mais particular e mais próprio de cada um, porque hoje se celebram os santos de cada nação, os santos de cada reino, os santos de cada religião, os santos de cada cidade, os santos de cada família. Vede quão nosso e quão particular é este dia. Não só celebramos os santos desta nossa cidade, senão cada um de nós os santos da nossa família e do nosso sangue. Nenhuma família de cristãos haverá tão desgraciada que não tenha muitos ascendentes na glória. Fazemos pois hoje festa a nossos pais, a nossos avós, a nossos irmãos, e os que tendes filhos no céu, ou inocentes ou adultos, fazeis também festa hoje a vossos filhos. Ainda é mais nossa esta festa, porque, se Deus nos fizer mercê de que nos salvemos, também virá tempo, e não será muito tarde, em que nós entremos no número de todos os santos, e também será nosso este dia. Agora celebramos, e depois seremos celebrados: agora nós celebramos a eles, e depois outros nos celebrarão a nós. Esta última consideração, que é tão verdadeira, foi a que fez alguma devoção à minha tibieza neste dia tão santo, e quisera tratar nele alguma matéria que nos ajude a conseguir tão grande felicidade. Dividirei tudo o que disser em dois discursos, fundados nas duas palavras que tomei por tema, e nas duas do título da festa. Pois a festa é de todos os santos, no primeiro discurso veremos quão grande coisa é ser santos, e no segundo, quão facilmente o podemos ser todos. O primeiro nos dá a primeira palavra do tema: beati; o segundo nos dará a segunda: mundo corde. Digamos à Virgem Santíssima: Regina Sanctorum omnium ora pro nobis, e ofereçamos-lhe a costumada Ave Maria.

(1) Bem-aventurados os limpos de coração (Mt. 5,8).

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Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade.(II Coríntios 13,8)