Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade. (II Coríntios 13,8)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (05 de 11)

V

Os anjos, que são a terceira classe dos santos que hoje celebra a Igreja, assim como nos persuadem com suas inspirações, nos ensinam com seu exemplo quão grande coisa é ser santos. O exercício dos anjos no céu é estarem sempre louvando a Deus. Nós não o sabemos louvar, porque o não vemos; eles, que o estão sempre vendo, só o louvam como devem. Mas, quais são os louvores, ou as lisonjas que os anjos cantam a Deus? O profeta Isaías, que uma vez foi admitido a os ouvir, o disse: Seraphim stabant, et clamabant alter ad alterum: Sanctus, Sanctus, Sanctus (Is. 6,2s): Estavam os serafins divididos em dois coros, e o que cantavam alternadamente a grandes vozes, era: Santo, Santo, Santo. — Isto diziam e repetiam sem cessar, como também os ouviu, daí a oitocentos anos, S. João no seu Apocalipse: Et requiem non habebant, dicentia: Sanctus, Sanctus, Sanctus (9). Se isto não estivera tão expresso em um e outro testamento, quem tal cuidara? Deus não é um objeto imenso, as grandezas de Deus não são infinitas, os anjos que o vêem e conhecem intuitivamente não são tão entendidos e tão sábios? Pois, como não variam de vozes nem de pensamento? Por que não discorrem por outras perfeições divinas, por que não louvam e não engrandecem outros atributos? Por isso mesmo. Porque vêem a Deus, porque o conhecem, e porque são entendidos. Quem louva ou lisonjeia discretamente, diz tudo o que pode e tudo o que mais agrada, e a maior grandeza que se pode dizer de Deus, e o louvor que mais lhe agrada é chamar-lhe Santo. Por isso o primeiro coro dos anjos diz Santo, e o segundo responde Santo; o primeiro torna a dizer Santo, e o segundo torna a repetir Santo; e isto dizem, e isto sempre estão dizendo sem cessar, uma e mil vezes,e isto hão de continuar a dizer por toda a eternidade, porque, depois de dizerem que Deus é Santo, Santo e mais Santo, nem os serafins do céu, que são os anjos de mais alto entendimento e de mais profunda ciência, sabem dizer mais, nem lhes fica mais que dizer. É Deus eterno, é imenso, é infinito, é onipotente, mas tudo isso são grandezas, porque estão juntas com o ser Santo. Se Deus, por impossível, não fora Santo, todos os outros seus atributos careceram da sua maior perfeição. Por isso é perfeição em Deus o ser eterno, porque é eternamente Santo; por isso é perfeição o ser imenso, porque é imensamente Santo; por isso é perfeição o ser infinito, porque é infinitamente Santo; por isso é perfeição o ser onipotente, porque é todo-poderosamente Santo: Sanctus, Sanctus, Sanctus.

Isto é o que os anjos dizem de Deus. E de si, que dizem, ou que podem dizer? O que podem e são obrigados a dizer todos os que perseveraram no céu e o não perderam, é que todo o seu bem e toda a sua felicidade consistiu em ser santos. Houve no céu entre os anjos aquela grande batalha que sabemos: Lúcifer, com os maus, rebelou-se contra Deus; S. Miguel, com os bons, seguiu as partes de seu Senhor; estes venceram, aqueles foram vencidos, e que ganharam os que ganharam a vitória, que perderam os que perderam a batalha? Nenhuma outra coisa mais que o ser ou não ser santos. Os que ganharam a vitória ganharam o ser santos, porque ficaram confirmados em graça; os que perderam a batalha perderam o ser santos, porque foram privados da mesma graça, e em tudo o mais que tinham por natureza ficaram como dantes eram.

Daqui se entenderá um famoso lugar de Ezequiel no capítulo vinte e oito, onde chama querubim a Lúcifer: Tu Cherub extentus, et protegens, et posui te in monte sancto Dei, in medio lapidum ignitorum ambulasti. Perfectus in viis tuis a die conditionis tuae, donec inventa est inquitas in te (10): Tu, ó querubim, eras o anjo de maior esfera, e que debaixo de tuas asas tinhas todos os outros:Tu Cherub extentus, et protegens. Eu te criei Santo e em graça, e te pus no céu: Posui te in monte sancto. Tu estavas entre os serafins, onde passeavas com liberdade de superior: In medio lapidum ignitorum ambulasti. E desde o dia de tua criação foste perfeito, até que em ti se achou o pecado e maldade, que tu inventaste: Perfectus in viis tuis, donec inventa est inquitas in te. Em suma, que Lúcifer, como diz o texto, e declaram conformemente todos os Padres, era por natureza serafim, e criado entre os serafins, e superior a todos. Pois, se era serafim, como lhe chama o profeta, em nome de Deus, não serafim, senão querubim? E se lhe nega o nome de serafim, porque já não era anjo, senão demônio, por que lhe chama querubim: Tu Cherub? Porque serafim significa amor e amante, e querubim significa ciência e sábio; e ainda que Lúcifer, pela rebelião e pelo pecado, perdeu o amor e a graça de Deus e os outros dons sobrenaturais, não perdeu a sabedoria e as ciências, nem os outros dotes do entendimento e da natureza, com que fora criado. Tão anjo ficou no saber, como dantes era, tão anjo no poder, tão anjo na capacidade da esfera, tão anjo na beleza e formosura natural, e em tudo o mais como dantes, e somente privado da graça e da santidade, em que por sua culpa e maldade se não quis conservar.

De sorte que a principal diferença que então houve e hoje há entre Miguel e Lúcifer, é que Miguel chama-se S. Miguel, e Lúcifer não se chama santo. Direis que também foi privado Lúcifer da glória e da vista de Deus. Não foi, porque essa ainda a não tinha, que se já tivera visto a Deus não o pudera ofender nem perder a graça e santidade. Mas, assim como Deus o privou da graça e da santidade, por que o não privou também de tudo o mais? Quando um vassalo se rebela contra seu rei, confiscam-lhe todos seus bens. Pois, se Lúcifer se rebelou contra Deus, por que lhe confiscam só a graça e a santidade, e lhe deixam tudo o mais? Porque só a graça e a santidade são bens: tudo o mais que têm os anjos maus, uma vez que não têm santidade, antes são males que bens. A ciência, sem santidade, é ignorância; a formosura, sem santidade, é fealdade; o poder, sem santidade, é fraqueza; a grandeza, sem santidade, é miséria; e por isso são os anjos maus os mais miseráveis de todas as criaturas, assim como os anjos bons os mais felizes e bem-aventurados de todas: estes porque são santos, aqueles porque não são santos.

Notas:
(9) E não cessavam de dizer: Santo, Santo, Santo (Apc. 4,8).

(10) Tu eras um querubim que estendia as tuas asas e protegia, e eu te pus sobre o monte santo de Deus, tu andaste no meio das pedras incendidas. Tu eras perfeito nos teus caminhos desde o dia da tua criação, até que a iniqüidade se achou em ti (Ez. 28,14 s).

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