Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade. (II Coríntios 13,8)

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O Sinal da Cruz


Por Pe. Divino Antônio Lopes, FP.

01. Qual é o sinal do cristão?

R= "O sinal do cristão é a cruz" (2º Catecismo da Doutrina Cristã).


"Todos os batizados são cristãos. Os cristãos têm um sinal que os distingue das pessoas que não o são. É o Sinal da Cruz. Sinal quer dizer distintivo; assim como uma pessoa traz no seu peito um distintivo indicando que pertence àquela sociedade, também os cristãos têm um sinal que os distingue das demais pessoas. Antes de Nosso Senhor, a vista de uma cruz excitava sentimentos de horror e lembrança de criminosos e suplícios horrendos. Hoje, vendo uma cruz, pensamos em Jesus, na Redenção realizada com tanto amor. Ela ocupa na Igreja lugar de honra, impera sobre os edifícios religiosos, brilha como jóia no diadema dos reis e nos cemitérios recorda a doce esperança cristã. Os cristãos desde a origem da nossa religião fizeram uso deste sinal; ele é para os católicos mais ou menos o que vem a ser a farda para os servidores da Pátria. A forma exterior deste sinal indica o mistério da Redenção, que foi realizado na Cruz. As palavras: "Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo", indicam o mistério da Santíssima Trindade" (Mons. João Alexandre Loschi, Catecismo Rural, Edições Paulinas, 2ª Edição, maio - 1959).

Exemplos

I. O Sinal da Cruz

Henrique IV, depois de humilhar-se em Canossa, mostrou-se de novo inimigo do Papa e foi com seu exército sitiar Roma. No segundo assalto, apesar da heróica resistência dos sitiados, incendiou todas as muralhas. Um espantoso anel de fogo rodeava a cidade, da qual não se erguiam senão gemidos dos agonizantes e pranto das mulheres aterrorizadas. Então no alto de uma torre, majestoso e pálido, entre e o clarão e o fumo do incêndio, apareceu o Papa Gregório VII, e com gesto solene e calmo fez o sinal da cruz contra as chamas, e imediatamente o fogo se apagou como se tivesse recebido uma chuva torrencial. Todas as vezes que nos encontrarmos em perigos e angústias, confessemos a SS. Trindade fazendo o sinal da cruz, e grande alívio sentirá a nossa alma.

II. O Poder da Cruz

O caso que vou contar é engraçado, mas dá-nos uma preciosa lição sobre o poder da santa cruz. Tinham os monges de certo convento o sagrado dever descer todos os dias à igreja e, ali, sentando-se o Abade sua grande cadeira de superior, e eles nos bancos do presbitério cantavam os louvores de Deus. Sucedeu que, um dia, o santo Abade Leufrido se achava adoentado em seu pobre leito e não pôde descer para presidi ao ofício em sua igreja. O demônio, que vive rodeando também os santos e servos de Deus, achou que era chegada a ocasião de todos os monges lhe prestarem reverência. Tomou, pois, hábito e a figura do Abade, desceu com os outros ao presbitério e sentou-se depressa na grande cadeira com ar de impor­tância. Todos os monges fizeram-lhe reverência; mas um deles chegando atrasado por vir da cela do Abade, viu com espanto outro Leufrido ali sentado. Volta imediatamente à cela abacial, e diz alvoroçado: — Dom Abade, que é isso? Estais ao mesmo tempo em dois lugares? Acabo de encontrar-vos sentado no presbitério, e estais aqui... que é isso? Caiu o Abade na conta do diabólico estratagema e, sentindo-se com forças bastantes, vai à igreja depressa; mas, antes de entrar no presbitério, traça o sinal da cruz em todas as porta e janelas. Entra, depois, no presbitério e, armado de um bom chicote molhado em água benta, começa a açoitar o fingido Abade. O demônio foge espavorido e Leufrido segue-o. O demônio quer passar por uma porta e, embora esteja aberta, volta correndo; aproxima-se de uma janela, e não consegue passar, porque em toda parte encontra pela frente o sinal da cruz. Abade surra a valer; os monges riem-se a bandeiras despregadas, e o diabo escapa, afinal, por uma chaminé! É que o santo esquecera de fazer ali o sinal sagrado. Leufrido tomou, então, a palavra e explicou aos religiosos que Deus permitira aquela cena para que eles conhecessem o poder da Cruz e, nas tentações, não deixassem de benzer-se com o sinal sagrado, que o demônio tanto teme e detesta.

III. Santo Antônio de Pádua e a Cruz

S. António de Pádua, ainda menino, servia de acólito na igreja da Sé, em Lisboa. Um dia, estando no coro, apareceu-lhe o diabo em forma horrível. O menino, sem se amedrontar, fez devotamente o sinal da cruz na grade. O diabo fugiu no mesmo instante. A cruz ficou impressa no mármore, como se este fora de cera.

IV. A tentação e o Sinal da Cruz

Santa Margarida, mártir, era uma donzela de rara beleza. Aos dezesseis anos de idade, dirigiu-se a seu pai, que era pagão, e disse-lhe: "Meu pai, quero confiar-lhe um segredo. O senhor é sacerdote dos ídolos; eu, porém, sou batizada e creio em Jesus Cristo". Imediatamente apoderou-se daquele homem um furor selvagem. Atirou-se sobre a filha, como uma fera e logo mandou metê-la no cárcere. Na prisão apareceu-lhe o demônio, murmurando-lhe ao ouvido: "Ora, vamos, não seja tola... Você é jovem e bela. Aí bem perto a espera um noivo pagão, rico e nobre; com ele você viverá dias felizes. Abandone a Jesus". Quereis saber o que fez Margarida nessa terrível tentação, nesse perigo iminente de perder a sua alma? Devotamente fez o sinal da cruz, e no mesmo instante o demônio desapareceu. Aproximou-se dela o Anjo da Guarda e consolou-a. Passados alguns dias foi Margarida conduzida ao lugar do martírio. Diante daquela juventude radiante, daquela formosura encantadora, o algoz ficou comovido e a espada vacilou em sua mão. Iria ele desistir de dar o golpe? Iria ela perder a palma do martírio? Margarida fez o sinal da cruz e disse: "Dê o golpe, irmão; a cruz é minha força!" Inclinou a cabeça e colheu a palma do martírio. A cruz deu-lhe a vitória.

V. São Bento e o Sinal da Cruz

Um dia alguns malvados, querendo matar S. Bento, apresentaram-lhe, para beber, uma taça de vinho envenenado. O santo fez o sinal da cruz sobre a taça, e esta quebrou-se, e o vinho mortífero espalhou-se por terra.

VI. Santa Cunegundes e o Sinal da Cruz

Em outro dia, Santa Cunegundes acordou por causa de um excessivo calor que sentia no sono. Fez o sinal da cruz, e o fogo apagou-se, deixando-a ilesa.


VII. Turbilhão muda de direção

A 15 de dezembro de 1502, Cristóvão Colombo, na sua quarta viagem pelo Novo Mundo, estava quase agonizante por causa das grandes tribulações sofridas, quando, de uma das caravelas, partiu um grito desesperado que anunciava perigos extremos. Toda a tripulação foi presa de espanto à vista de um cone imenso, de uma tromba marinha que ligava o mar ao céu, levantando as águas como imensas montanhas. Um vento impetuoso impelia aquele terrível fenômeno contra a pequena frota, que certamente seria afundada num abrir e fechar de olhos. Cristóvão Colombo, quando ouviu o mugido dos ventos e o grito desesperado dos seus, pensou na cena evangélica em que Jesus dormia enquanto o mar em borrasca enchia de pânico os apóstolos. A suave figura do Mestre, que com um gesto solene acalmava as ondas, apresentou-se-lhe à mente cheia de fé, e, reunindo as forças, ele se lançou de joelhos para dizer a Jesus que acreditava no seu poder e lhe suplicava salvá-los do perigo iminente. Foi atendido, porquanto, quando por inspiração divina o comandante traçou contra o turbilhão o sinal da cruz, ele mudou de direção e foi perder-se na imensidade do Atlântico.


02. De quantos modos se faz o sinal da cruz?

R= "O sinal da cruz se faz de dois modos: persignando-se e benzendo-se" (2º Catecismo da Doutrina Cristã).


03. Que é persignar-se?

R= "Persignar-se é fazer três cruzes com o dedo polegar da mão direita aberta: a primeira na testa; a segunda na boca; a terceira no peito, dizendo: Pelo sinal + da santa cruz, livrai-nos, Deus, + Nosso Senhor, dos nossos + inimigos" (2º Catecismo da Doutrina Cristã).


04. Para que se fazem estas três cruzes?

R= "Faz-se a primeira cruz na testa, para que Deus nos livre dos maus pensamentos; a segunda, na boca, para que Deus nos livre das más palavras, e a terceira no peito, para que Deus nos livre das más obras, que nascem do coração" (2º Catecismo da Doutrina Cristã).

05. Que é benzer-se?

R= "Benzer-se é fazer uma cruz, com a mão direita aberta, da testa ao peito e do ombro esquerdo ao direito, dizendo: Em nome do Pai, e do Filho, + e do Espírito Santo. Amém" (2º Catecismo da Doutrina Cristã).


Hoje, infelizmente, milhares de católicos não fazem mais o sinal da cruz; os mesmos "esparramam" os dedos pelo rosto, peito e ombros, parece que estão mais se lavando do que benzendo-se. É preciso fazer o sinal da cruz com o máximo de piedade e respeito: "Tomai cuidado, portanto, para não fazerdes sinais de cruz ridículos. Nunca traçá-los apressadamente; antes que executá-los mal, é melhor omiti-los" (Bem-aventurado José Allamano, A Vida Espiritual, Capítulo 27).

06. Por que o sinal da cruz é o sinal do cristão?

R= "O sinal da cruz é o sinal do cristão: 1º porque serve para distinguir os cristãos dos infiéis, e 2º porque indica os principais mistérios da nossa fé" (2º Catecismo da Doutrina Cristã).

07. É coisa útil fazer freqüentemente o sinal da cruz?

R= "Sim; fazer frequentemente o sinal da cruz é coisa utilíssima, porque este sinal tem a virtude de avivar a fé, repelir as tentações e alcançar-nos de Deus muitas graças" (2º Catecismo da Doutrina Cristã).

"O sinal da cruz é o sinal do cristão, uma prece de louvor à santíssima Trindade, uma profissão de fé. Através do sinal da cruz alcançam-se muitas graças. Certa vez, como faltasse água potável e os passageiros do navio morressem de sede, São Francisco Xavier adoçou água do mar com o sinal da cruz. O frequente deste sinal é recomendado pelo catecismo e por muitos santos" (Bem-aventurado José Allamano, A Vida Espiritual, Capítulo 33).

08. Quando devemos fazer o sinal da cruz?

R= "Devemos fazer o sinal da cruz pela manhã, ao despertar; à noite, ao deitar; antes e depois das refeições; no princípio e no fim de qualquer trabalho; antes de começar a oração; nas tentações e nos perigos" (2º Catecismo da Doutrina Cristã).

"O cristão começa seu dia, suas orações e suas ações com o sinal-da-cruz, 'em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém'. O batizado dedica a jornada à glória de Deus e invoca a graça do salvador, que lhe possibilita agir no Espírito como filho do Pai. O sinal-da-cruz nos fortifica nas tentações e nas dificuldades" (Catecismo da Igreja católica, 2157), e: "A cada ação, sempre que saímos ou voltamos para casa, lavando-nos, vestindo-nos, ao acendermos as luzes, durante a conversação, sempre fazemos o sinal da cruz" (Tertuliano, De Coron. milit., c. III), e também: "A cada ação, a cada passo, que a mão sempre trace a cruz" (São Jerônimo, Epist. 18 ad Eustoch.).

[Destaques nossos]
Fonte: http://www.filhosdapaixao.org.br/conhecer_01_sinal_da_cruz.htm

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Tsunami: se Deus existe e é bom, então como entender a fúria da natureza e a predestinação ao mal?


Revista Aquinate


Em razão da catástrofe ocorrida em 26 de Dezembro de 2004, o Tsunami que devastou principalmente o Siri Lanka, muitas matérias jornalísticas e inclusive religiosos abordaram o tema de se Deus pode causar o mal. Mas subjacente a este tema havia uma outra questão: Deus predestina alguém ao bem ou ao mal?
Relendo estas reportagens me ocorreu aproveitar e redigir esta reflexão sobre este acontecimento, a partir de uma visão filosófica tomista. Trata-se pois de uma questão teológica a que me aventuro responder enquanto mero conhecedor de poucas idéias filosóficas, cujo motivo maior para responder está mais na fé que nos conhecimentos que disponho. Se em última instância já não for mais o argumento certo que nos fizer ver com clareza o constitutivo do tema, não haverá dúvida de que o que nos falta é a fé. Portanto, me ponho a analisar a questão que surgiu como tema de fundo nas matérias jornalísticas acerca do Tsunami e a ação de Deus: Deus predestina algo ou alguém ao mal?
Minha intenção - longe de dar efetiva resposta à questão proposta – é a de promover pela via da razão – até onde a razão pode alcançar, um esclarecimento amadurecido a partir de uma reflexão filosófico- teológica pautada nas Escrituras, acerca do tema proposto. À questão que inicia a nossa análise é: Se Deus é onisciente e sabe que alguns não se salvarão, porque continua criando aqueles que Ele conhecia e sabia antes de criar que não se salvariam?
Procurarei tratá-la progressivamente, segundo o pensamento de Tomás de Aquino. A dificuldade de compreender a questão reside no fato de que é necessário esclarecer alguns princípios que são subjacentes à própria pergunta e que podem ter sido considerados equivocadamente: Deus não predestina ao mal; o homem é livre para escolher o mal que não quer e elege ou o bem que quer e não o elege; Deus providencia assim mesmo, graças para os que não elegem o bem que querem, mas o mal que não querem, mas para que sejam eficazes na liberdade é necessário antes se abrir e converter-se a Deus. Prolegômenos Para explicar a predestinação do homem ao mal por parte de Deus alguém poderia perguntar: Em Deus há o mal? Como introdução geral podemos começar dizendo que Deus é sumo amor e bem. Não há n'Ele mal, Ele não predestina ninguém ao mal, pois quer a todos no seu amor. Disso decorre que não há o mal em Deus. Mas, se n'Ele efetivamente não há o mal, não podemos dizer o mesmo do mundo. Então alguém poderia perguntar: não há o mal no mundo? E a resposta seria sim. É um fato a constatação do mal no mundo, a dor e o sofrimento do homem evidenciam isso. A natureza toda geme e sofre, haja vista a catástrofe do Tsunami. Em tudo há a privação do bem.
Sendo um fato a existência do mal no mundo, alguém poderia invariavelmente perguntar: se Deus é o criador do mundo não é ele quem causa o mal no mundo? Para quem pergunta pareceria haver um dilema que se pauta na seguinte questão: ora, se é Deus o criador do mundo, não seria ele mesmo a causa do mal que há na criação? Pelo exposto logo no início poderia responder que se Deus é sumo bem, Ele não poderia senão causar somente o bem. Logo, deveria haver outra explicação para entender o que é objeto de questionamento. Portanto, Deus é sumo bem e a sua obra de criação é boa. Se há o mal no mundo este não proveio de Deus que o criou. Daí que pela evidência da existência do mal no mundo ninguém poderia induzir que o seu criador é mal. Do contrário, todo defeito ou privação que existir numa produção deveria ser aplicado a quem a produz, o que não é verdadeiro. Por ser cego quem é retratado numa bela pintura não se segue daí que provavelmente trata-se de um auto-retrato ou que o pintor fosse cego também.
Pautado no anterior – de que o mal não procede de Deus e de que existe no mundo – alguém poderia ser levado a pensar que o mal é um co-princípio ao lado de Deus: Deus seria o princípio do bem e o mal o outro, como pensavam os Maniqueístas. Algumas correntes filosóficas inspiradas no neoplatonismo, como os maniqueístas pensavam desta maneira. Inclusive alguns teólogos judeus, na Idade Média, como Avicebrão, acreditava haver um princípio espiritual bom que é Deus e um mal que seria a matéria encontrada no mundo físico.
Deste modo alguém perguntaria: o mal existe no mundo como um princípio oposto ao de Deus? Responder-se-ia dizendo que o mal não é um ser, mas existe ou está num ser, ali onde não se encontra alguma perfeição ou bem realizado que deveria ser encontrado e realizado. A cegueira, por exemplo, é um mal físico e está nos olhos de um ser que embora seja bom, se encontra privado de uma perfeição, a visão, justamente ali onde deveria realizar-se este bem. O vício, por exemplo, é um mal moral e está no comportamento de um sujeito que embora seja bom pela natureza, se encontra privado da virtude, justamente ali onde deveria realizar-se um bem devido na natureza: a virtude.
Disso se segue que o mal não existe pelo seu próprio ser, essência ou natureza, senão que existe como privação de perfeição no ser, na essência e na natureza de um sujeito que é um bem, mas que pela carência de alguma perfeição ou bem devido nalguma parte daquele ser, essência ou natureza, diz-se haver nele mal. Somente o bem existe por ser, essência e natureza. Como privação que é, o mal existe no sujeito que é um bem, e existe onde neste sujeito há a não realização ou privação de alguma perfeição. Disso se segue que da essência sumamente boa de Deus nenhum mal procede e de que todo mal que possa haver, este existe como privação de alguma perfeição num ser que é por si mesmo um bem.
Portanto o mal é privação do bem no ser. Onde não se realiza o bem, surge o mal como privação do bem. O mal não tem essência, pois é antes um acidente do que não se realiza numa ação ou num ser como bem. Por isso os antigos diziam que o bem é de causa íntegra e o mal qualquer defeito. Pois bem, se não é Deus quem causou o mal no mundo e se o mal não tem ser, essência e natureza próprias, alguém ainda perguntaria: como então entrou o mal no mundo? A resposta seria: pela não aceitação ou negação do bem que é Deus e que por causa disso gerou-se justamente a privação do bem, cujo nome temos dito ser o de mal. Mas retornemos à questão anterior.
Ainda não satisfeito alguém poderia perguntar: por que Deus permitiu que o mal entrasse no mundo? Ninguém é predestinado ao mal. Mas, predestinado ao bem não significa predeterminado ao bem. Há no homem a liberdade, faculdade e ato da natureza do homem que lhe capacita autonomia na ação, portanto, que lhe capacita eleger, julgar o que lhe pareça melhor, ainda que possa errar elegendo o que lhe pareça melhor, sem saber e sem que o que é eleito seja efetivamente um bem para si. Portanto, se ninguém é predestinado ao mal, todos são chamados à santidade.
Ser chamado ou convidado para uma festa não me obriga a ter que ir. Por isso, embora sejamos predestinados ao bem e vocacionados à santidade, somos livres para eleger e julgar, segundo nosso conhecimento, se devemos escutar ou não o chamado. Bem, alguém ainda poderia perguntar, pautado no anterior, dizendo que se o que a que Deus nos chama é tão bom para nós, porque nos deu a capacidade de não elegê-lo? Efetivamente esta capacidade nos foi dada primeiramente porque Deus quis que as criaturas que mais amou ao criar Lhe estivessem maximamente próximas em perfeição pela semelhança na liberdade. Em segundo lugar, e disso trataremos mais abaixo que, quando se ama na verdade e no bem, como Deus nos ama, nos ama livremente; e seria contrária a esta própria capacidade de autonomia – a que Deus nos fez partícipes livremente – se por uso dela Deus nos obrigasse a amá-Lo. Deus não nos obriga a amá-Lo, mas nos revela, ensinando e advertindo, que não há maior amor que a nossa liberdade pudesse perfeitamente eleger que não fosse o que Ele nos oferece.
Contudo, como decorrência da queda original – cuja queda constituiu-se no afastamento dos bens espirituais que Deus nos dá e por cuja perda nos dificultou o conhecimento do bem e da verdade – podemos julgar e eleger equivocadamente algo, como efeito da queda e da ignorância que isso produziu em nós. A ignorância neste caso é desconhecer o que se deveria conhecer para poder eleger e julgar bem uma ação ou alguma coisa.
Não obstante, ao se nos revelar Deus nos permitiu conhecer os seus desígnios de restauração de sua obra amada caída: o homem. Deste momento em diante, sabendo o que se deve fazer para converter-se, aplica-lhe responsabilidade pelas ações. Portanto, a queda não tirou ou eliminou a responsabilidade humana, já que Deus revela ao homem os seus desígnios. Há, portanto, responsabilidade se alguém usa mal a eleição e o julgamento pela liberdade na escolha de uma ação, se conhece os desígnios de Deus. Com a queda o homem não perdeu o que lhe fora dado essencialmente por Deus, por natureza, formando a natureza do homem. Sua razão, vontade e liberdade continuaram. A queda o fez perder aquilo que sobrenaturalmente agia na natureza na promoção de sua progressiva conversão a Deus e que Deus o havia dado por amor: a graça.
O livre-arbítrio usado na ignorância dos desígnios de Deus e no fechamento à graça, causa dor e sofrimento ao homem. Alguém poderia então perguntar: porque aparentemente não sofrem os que mesmo conhecendo os desígnios de Deus, não o seguem, quando no uso da liberdade elegem algo mal e o usufruem como se fosse algo bom? O prazer instantâneo de uma má eleição oferece a quem a exerce a sensação de poder e autodomínio, que são próprios não da sensação que promove o prazer, mas da liberdade mesma, pois a liberdade mesmo quando mal usada, com ignorância, não deixa de promover em quem a exerce, aquilo que lhe é próprio e que constitui um bem, isto é, a sensação de poder e autodomínio sobre a ação, pois é isso inerente a qualquer ação livre, já que se não fosse assim, somente sentiriam isso quem agisse livremente para o bem e não para o mal; mas vemos que o atributo bom da liberdade privilegia, no que lhe é natural, inclusive a quem a utiliza mal; isto prova que a liberdade é um bem em si mesmo, e o mal está em seu mau uso.
Não convém exercer a liberdade na ignorância e na dúvida da matéria a que se aplicará o livre arbítrio, pois se o homem possui a razão como instrumento para alcançar o remédio devido para estas enfermidades seria incauto fundamentar a liberdade em qualquer elemento inferior à razão, como nos sentidos ou nos instintos. O mau uso da liberdade fundamentando-a no que os sentidos, as paixões e os instintos a determinam, acaba por aprisionar a liberdade ao objeto a que tais paixões, sentidos e instintos tendem. Neste caso, o que deveria ser autônoma diante inclusive do que mais possa desejar, a liberdade acaba por torna-se prisioneira do que inclusive possa não desejar. Parece ter sido LÚCIDO DE RIEZ [séc. V] quem introduziu a doutrina segundo a qual havia duas predestinações: uma para a bem-aventurança e outra para a condenação eterna. Se isso fosse assim se seguiriam dois problemas: ficam praticamente negadas a liberdade humana [mediante a qual é possível em qualquer instante do curso da vida humana abrir-se à graça e libertar-se do flagelo] e a Redenção de Cristo [pois não se estenderia aos não predestinados]. Não discutiremos a tese de Lúcido, mas o modo como podemos entender filosófica e teologicamente o erro de sua doutrina, baseando-nos nas Escrituras e no Pensamento de Tomás de Aquino. §1. DA EXISTÊNCIA DE DEUS. A proposição ‘Deus existe’ é evidente para Si mesmo e não para nós [S.Th. Iq2a1]. Se Deus não tivesse se revelado, o homem não o teria conhecido. Não obstante, a proposição ‘Deus existe’ pode também ser evidente para nós se tivermos em conta a própria Revelação – ato de amor – que se deu pela criação. A criação - que é também modo de Revelação de Deus – é obra e efeito da onipotência de Deus; e isso nos permite conhecer-Lhe pelos efeitos, no uso de nossas faculdades. Portanto, pela razão, mediante análise dos efeitos, pode-se inferir a necessidade de uma Causa Primeira: A existência de Deus. Por isso, é possível demonstrar a existência de Deus [S.Th. Iq2a2], pois como diz o Apóstolo na Carta aos Romanos: “As perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis à inteligência, por suas obras” [Rm 1,20]. A quem crê bastaria fixar-se em Ex 3,14 onde Deus revela a sua existência dizendo: ‘Eu sou Aquele que sou’. Mas Deus também se revela ao incrédulo quando não lhe omite a possibilidade de conhecê-lo, ainda que não Lhe creia. Nestes termos Deus se oferece à inteligência do crédulo e do incrédulo na possibilidade de conhecê-Lo, por suas obras. Disso pode decorrer ao menos tais possibilidades:
1) o crédulo bastar-se na revelação para afirmar que Deus existe; 2) o crédulo acreditar que Deus existe, mas procurar demonstrá-Lo no uso da razão; 3) o crédulo acreditar que Deus existe, mas ser impossível conhecê-Lo ou demonstrar-Lhe a existência [agnóstico]; 4) o incrédulo sem crer-Lhe, procurar conhecê-Lo e por fim O conhece. 5) o incrédulo sem crer-Lhe não procurar conhecê-Lo e disso vir a negar-Lhe o ser e a existência [ateu]. Note-se que o ateu não é aquele que nega meramente a existência de Deus por não ter como conhecê-La, mas é aquele que se rejeita a querer conhecê-lo. §2. DA PERFEIÇÃO DE DEUS. Nenhuma perfeição pode faltar a Deus. De tal maneira que Deus é perfeito [S.Th.Iq4a1]. Como perfeição de sua essência afirma-se a bondade: Deus é o sumo bem e todas as coisas são boas pela bondade divina [S.Th.Iq6a1-4]. A finitude e a mutabilidade são imperfeições, portanto a infinidade [S.Th.Iq7a1-4] e a imutabilidade [S.Th.Iq9a1-2] são perfeições divinas. Nestes termos não há o que possa medir o ser de Deus, senão Deus mesmo, pois como Ele não há o que não tenha tido nem início nem término no tempo, já que Ele é eterno [S.Th.Iq10a1-6].
Ora, se não há nada mais tão perfeito além de Deus, necessariamente Ele é uno e único [S.Th.Iq11a1-4]. Portanto, nada, nem ninguém conhece a Deus como Ele mesmo se conhece [S.Th.Iq14a2-4] e nada nem ninguém pode conhecer perfeitamente como Deus conhece todas as coisas que d'Ele são distintas [S.Th.Iq14a5-6]. Por isso Deus é onisciente, pois a tudo conhece. Deus assim sabe o que quer e pode o que sabe, pois ele é onipotente [S.Th.Iq25a1-6]. Daí haver em Deus perfeita vontade [S.Th.Iq19a1-5].
Por isso o Apóstolo diz na Carta aos Efésios 1,11 que Deus é “Aquele que faz segundo a deliberação de sua vontade”. Ora, o que fazemos por uma deliberação voluntária, não o queremos por necessidade. Logo, Deus não quer por necessidade aquilo o que quer. Portanto, há livre-arbítrio em Deus [S.Th.Iq19a3 e 10]. Mas porque é perfeita quando quer, Sua vontade se cumpre sempre [S.Th.Iq19a6] e é imutável. O mal é privação do bem, mas Deus é o sumo bem e não há privação nenhuma no seu querer, de tal modo que sua vontade é sempre do bem. Logo, Deus nunca quer o mal [S.Th.Iq19a9].
Como canta o livro da Sabedoria 11, 25, Deus ama tudo o que existe e nada detesta do que fez. Por isso sabiamente João revelará que Deus é amor [S.Th.Iq20a1-4]. Porque amor é doação, a Deus convém o atributo justo, pois por amor e sabedoria Deus dá a cada um de acordo com a sua dignidade. Por isso, a sua justiça é a verdade [S.Th.Iq21a3]. Deus que tudo sabe, conhece as deficiências das criaturas; mas não convém a Deus entristecer com a miséria das criaturas, mas lhe convém ao máximo, por seu amor, bondade e sabedoria, fazer cessar essa miséria. Daí que Deus é misericordioso [S.Th.Iq21a3].
Por isso, como se diz no livro da Sabedoria, 15,3 “És tu Pai que tudo governas por tua providência”, para que nada falte às criaturas Deus por amor e bondade provém de bens aos que dele carece [S.Th.Iq22a1-3]. Para que nada falte aos homens, segundo o que lhe convém prover, Deus com sua bondade e amor predestina bens aos homens para que supram as suas dificuldades. Portanto, a predestinação é ato de providência.
O homem é livre para aceitar ou não estes bens. Mas nem por isso Deus que é sumo amor e bem deixará de lhe prouver de bens necessários para que alcance a sua perfeição [S.Th.Iq23a1]. Aos que se abrem e aceitam estes bens Deus os ama ainda mais e os elege. Porém não deixa de amar aos que não se abrem e aceitam os seus bens, embora não seja Deus que não os eleja e os condene ou os predestine ao mal, mas antes são estes que não desejam a eleição divina e por se afastarem dela, afastam-se ainda mais do bem e do amor, condenando-se ao mal que é justamente a privação do amor e bem divinos.
Portanto não é Deus que predestina alguém ao mal, mas antes a ignorância e o orgulho humanos – que nascem do mau uso da liberdade e da privação do conhecimento de algum bem – que predetermina o homem a afastar-se de Deus e a anelar-se ao mal. Daí que por Deus ninguém é predestinado ao mal. E porque a tudo ama, a ninguém faltarão bens para alcançar a perfeição. E qual é a perfeição do homem? Conhecer a Deus. Mas é preciso esclarecer melhor o que são estes bens e como Deus ama a tudo o que cria e a ninguém condena, senão que alguém se condena a si mesmo por orgulho que é conseqüência da ignorância do amor divino e do fechar-se aos bens que Deus prouve ao homem – por misericórdia – para ajudá-lo a superar suas deficiências e alcançar a perfeição que consiste em conhecê-Lo. §3. DA VOCAÇÃO UNIVERSAL À SANTIDADE. Porque Deus ama a tudo o que criou e sobremaneira aos homens, criaturas que Deus quis por si mesmas, criando-as à sua imagem e semelhança e revestindo-as de nobreza e as dignificando-as em si mesmas, a todos igualmente chama à santidade [1Ts 4,3: “Esta é a Vontade de Deus: a vossa santificação”]. Que consiste a santidade? Consiste em conhecer a Deus. Ver a Deus face a face. A Bem-Aventurança.
Pois bem, se santidade é conhecer a Deus, a vocação à santidade é vocação à sabedoria, pois não há saber maior que os homens possam alcançar que saber Deus. Ser santo é pois buscar ser perfeito como Deus [Mt 5,48]. Por muito nos amar e por havermos perdido o elo original com Deus, Deus se encarnou para mostrar-nos e revelar-nos o modelo de santidade: seu Filho Jesus Cristo que se nos revela como caminho, verdade e vida.
Cristo é modelo e tudo o que ele fez, ensinou e ordenou deve ser observado como caminho de santidade. Deus por amor re-estabelece o elo com a encarnação, paixão e morte do seu filho: é preciso morrer no mundo e para o mundo enquanto se ama ao próximo, para viver em Deus e para Deus enquanto se ama a Deus. Nenhum homem está fora desta vocação à santidade e à sabedoria pela parte de Deus, a não ser por arbítrio equivocado da própria liberdade de cada homem. Na história da humanidade encontramos um contínuo exercício de amor por parte de Deus a fim de trazer-lhe o que lhe pertence: nós. O projeto de salvação é um projeto de resgate.
Vimos que por arbítrio equivocado [um arbítrio pode equivocar-se por ignorância, por orgulho, por paixão desenfreada pelo mundo e suas coisas, que obscurecem os olhos da razão e do coração diante da graça] da própria liberdade o homem pode preferir os seus desejos e ao mundo, do que a vontade de Deus e por isso não se abandonar na vontade de Deus. Mas, nem mesmo assim Deus o abandonará, pois sua vontade é imutável e faz parte de sua vontade revelar-se plenamente a cada um dos homens.
Deste modo, Deus mantém-se fielmente aberto ao retorno de cada homem e haverá muito mais alegria do retorno deste, que pelo arbítrio fechou-se às graças de Deus, do que pelo justo que se mantém fielmente aberto a elas. Deus continuará minando o curso da vida de cada homem que se fechou à sua graça, com abundantes oportunidades de retorno pela mesma graça.
Mas, diante da graça, os olhos humanos muitas vezes desiludidos [ou iludidos] com o mundo, magoados pela injustiça que é conseqüência do não converter-se a Deus, petrificam-se e não percebem a vontade de Deus manifesto na graça e nem como Deus se faz presente em suas vidas pela graça, pois acreditam que a graça de Deus deve advir-lhes para tirar-lhes da pobreza material, da dor que aflige a carne, da morte que dilacera, embora a eficácia da graça não seja contrária a isso, a graça é sobretudo um bem espiritual que fortalece o espírito para iniciar o encontro de Deus com o homem já neste mundo, dando um tom sobrenatural ao coração e à razão humana diante de toda a miséria humana, fazendo-o entender e dando-lhe sentido à vida, na medida em que a vida plena do homem somente se realizará na morada de Deus.
Além de tudo isso a graça não é triste é força eficaz do amor, que edifica na dor e na miséria das pessoas no mundo a alegria e a fé de esperar pela graça a promessa de um reino de Deus onde ninguém mais vai sentir dor, chorar e ficar triste. §4. CONCLUSÃO: A graça é bem espiritual que fortalece o homem diante destas misérias e faz descobrir no homem que o amor divino se concretiza nesta vida quando por amor somos capazes de doarmo-nos aos outros para a diminuição da dor alheia, da miséria alheia independentemente se esta doação implique no aumento da nossa; pois já não importa para quem já se encontra vacinado pelo amor divino, manifesto pela graça, sentir qualquer dor neste mundo.
Pois bem a graça é o amor divino revelado por Deus a nós num ato contínuo que nos conserva durante toda a vida no ser, na espera de que num instante desta vida nós descubramos o quanto nos ama e o quanto nos quer. Deus nunca deixa de estar e fazer-se presente na vida do homem, mas pode o homem com o coração encrudelecido não percebê-la jamais. Deus se manterá enviando-lhes graças durante toda a vida e pede, chama e recorda ao homem da importância de seu papel.
Ele não quer perder nenhuma ovelha. Ele se manterá aberto ao retorno do filho pródigo e foi por eles que Deus enviou o seu próprio filho. Deus traçou um projeto de salvação para cada homem e não descansará enquanto em Teu coração não repousar aquele filho pródigo.
Neste projeto de salvação cada homem tem o seu papel no uso de suas faculdades e de sua ação. Deus não quer pela força, porque não nos fez pela força. Ele nos quer pelo amor, porque nos fez por amor; e o amor é livre. S. Agostinho tem razão ao afirmar que o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Deus.
A liberdade humana pode aprisionar-se nos desejos do mundo ou libertar-se transcendendo ao próprio mundo por força e ação da graça que Deus lhe dá. Mas somente abrindo-se a ela poder-se-á compreender o ardor e eficácia da graça no homem.
E porque a eternidade é a presença imutável de Deus diante de todo tempo, bastaria tão-somente um instante de nosso tempo em que houvesse efetiva conversão [abertura à graça], para que Deus nos abundasse de graças e nos justificasse na graça e nos amasse como eleitos.
Deus elege a todos, mas dentre todos alguns não o elegem e isto não basta para a salvação [e aos que O elegem ele os justifica no amor]: numa relação perfeita de amor, ambos devem se amar mutuamente. Deus não nos quer impor o seu amor, quer sim que o descubramos, pois a imposição seria o extermínio da autonomia de nossa liberdade, apanágio este que nos dignifica e nos torna semelhantes a Deus. E estes que não o elegem se fecham à graça aprisionando suas liberdades aos desejos do mundo. Que diremos: que estão predestinados à condenação? Claro que não! Porque como dissemos todos estamos predestinados por uma vocação universal à santidade e bastaria tão-somente um instante de abertura sincera ao amor de Deus que o Pai abriria os braços à espera do filho que há muito se foi e que há muito o esperava com a mesa posta para um grande banquete. Somos predestinados à santidade e nunca à condenação ou à maldade. Ainda que Deus possa prever a condenação de alguém isso não anula ou contraria a sua obra de criação que é obra de amor; porque não é Deus quem condena, mas o homem a si mesmo ao não reconhecer em Deus o seu Abba [Pai].
Deus pode então prever que um homem que se portando muito mal se afasta cada vez mais de sua predestinação à santidade? Claro que Sim! Mas isso em nada diminui o amor divino para a salvação daquela alma, pelo contrário, oferece-lhe tanto mais graças para que aumentem as ocasiões de conversão [Rm 5,20: “Mas onde abundou o pecado superabundou a graça”], embora em última instância a abertura à graça dependerá da liberdade, pois a graça não força a natureza livre, pois bate à porta e entra se a liberdade a deixar entrar. Por isso a graça supõe a natureza e não a destrói.
Somos predestinados à santidade, mas não predeterminados a ela [embora Deus não meça esforços para ver-nos com Ele; e se fôssemos predeterminados à santidade não seríamos condenados; mas também não somos nem predestinados e nem predeterminados à condenação], pois somos livres e no mau uso da liberdade que nos leva a fechar-nos à graça que é o amor de Deus, poderemos ser condenados, enquanto isso significa o oposto à santificação; assim pois com a liberdade se pode confirmar a predestinação à vocação à santidade, enquanto abertura à graça de Deus ou a condenação, enquanto fechamento à graça de Deus.
Os que o elegem recebem mais graças [se a liberdade abre a porta da natureza fica mais fácil entrar o que ora está para entrar], porque sendo Deus amor se doa ainda mais aos que a Ele se abrem, libertando a liberdade da escravidão dos desejos do mundo. Pois bem, a liberdade humana – a que Deus respeita e não muda, porque é autônoma [mas não é absolutamente ilimitada, pois a liberdade humana somente não é livre para eleger outra coisa quando se encontra diante do que melhor elegível não há e diante de quem é autor da natureza] – é o que pode coroar a natureza humana convertendo-a no arbítrio a Deus ou avertendo-a no arbítrio do caminho de Deus. Ainda sobre a liberdade humana há que se dizer que para a santidade a liberdade humana não é independente de Deus; portanto, no estado de sua miséria, mais do que nunca depende da graça de Deus. Portanto, não basta ser livre para lograr a santidade, pois a liberdade por si mesma não se basta e não é suficiente para atingir a este fim, já que estando corrompida a natureza humana, corrompeu-se também o seu ato essencial que é a liberdade. E porque ninguém dá a si mesmo o que não possui, como poderia a liberdade dar-se a si mesma a santidade se não a possui? Ou como poderia ela por si mesma, corrompida e sem auxílio divino pela luz da graça encontrar o que havia perdido na escuridão?
Portanto, a graça pela qual o homem recebe a justificação por meio de Cristo não vale somente para a remissão dos pecados já cometidos, mas também como ajuda para não cometê-los. E esse é a ação da graça sobre aqueles que no mau uso da liberdade estão presos no pecado, pois somente a graça poderá ajudá-los a não mais cometê-los. Por isso a graça é necessária ao homem.
A conseqüência deste arbítrio pode ser: tender a caminho avesso ao de Deus, daí a aversão a Deus, no sentido de que não versa o mesmo caminho de Deus; tender ao caminho que verte a Deus, que leva a Deus, daí conversão a Deus, no sentido de que versa o mesmo caminho de Deus.
E porque Deus conhece [onisciência] o que pode impedir a conversão humana – a quem profundamente ama – [amor], porque conhece as misérias e as deficiências do homem, pode [onipotência] e quer [liberdade] providenciar [providência] bens abundantes [graças] dadas por amor [misericórdia], sem limitar ou predeterminar a liberdade, para que o homem na autonomia de sua vontade possa se abrir livremente à graça e verter-se ao caminho de Deus [conversão] e retorne ao que foi predestinado [predestinação]: à santidade e à sabedoria [salvação].
Portanto, Deus quando cria o homem o pré-destina à santidade e à sabedoria, mas não o predetermina, porque para o bem e para o mal que possa realizar o homem Deus não determina a sua liberdade; por isso ama o que cria e continua criando e conservando com e no amor o que faz e não mede – antropomorficamente falando – nenhum esforço para trazer de volta o Seu tesouro, o homem, que se perde no mundo ao deparar-se com um mundo corrompido pelo pecado, herança da aversão pessoal de Adão, transmitida na origem aos homens. O homem se esquece de Deus, mas Deus nunca do homem. Mas o homem por esquecê-Lo e até mesmo desconhecê-Lo [ignorância] volta-se no uso de seu bem mais precioso – a liberdade – para o arbítrio equivocado das coisas e bens que o mundo lhe oferece, crendo encontrar neles aquela saudade do infinito que sente no seu mais íntimo: saudade de Deus.
Mesmo conhecendo esta deficiência humana, Deus permanecerá com o seu plano e projeto de salvação do homem, estando aberto ao homem e proverá graças suficientes e necessárias para que o homem, mesmo que num único instante de sua existência possa a vir a recordar-se de que há um Deus que é Pai amoroso e que fará tudo para tê-lo de volta, mesmo tendo que respeitar a autonomia da liberdade humana.
Portanto, podemos dizer que Deus porque não predestina ninguém ao mal, ama tudo o que cria e as cria no amor e se há perda do amor por parte do homem é conseqüência do desamor que é o mal [privação do bem] que há no mundo, como conseqüência do pecado e ao que se atrela e se aprisiona a sua liberdade. Independendo de tudo isso Deus ama o homem e espera uma resposta dele.

Fonte: http://www.aquinate.net/p-web/portal-caleidoscopio/atualidades/atualidades-1-edicao/analises/analises-tsunami.htm

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Restauração de tudo em Cristo


Sao Pio X, Carta Encíclica "E supremi Apostolatus"

CARTA ENCÍCLICA

Aos veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários em paz e comunhão com a Sé Apostólica.

PIO X, PAPA

Veneráveis Irmãos, Saudação e Benção Apostólica.

Sua elevação ao Pontificado.

1. No momento de vos dirigir pela primeira vez a palavra do alto desta cátedra apostólica a que fomos elevado por um impenetrável conselho de Deus, inútil é lembrar-vos com que lágrimas e com que ardentes preces Nos esforçamos por desviar de nós o múnus tão pesado do Pontificado supremo. Mau grado a desproporção absoluta dos méritos, parece-nos podermo-nos apropriar das queixas de S. Anselmo quando, a despeito das suas oposições e das suas repugnâncias, se viu forçado a aceitar a honra do episcopado. Os testemunhos de tristeza que ele então deu, Nós podemos produzi-los por Nossa vez, para mostrarmos em que disposições de alma e de vontade aceitamos a missão tão temível de pastor do rebanho de Jesus Cristo. As lágrimas dos meus olhos me são testemunhas, escrevia ele (Ep. 1.III,1), assim como os gritos e, por assim dizer, os rugidos que meu coração soltava na sua angústia profunda. Eles foram tais que não me lembro de haver deixado escapar semelhantes em nenhuma dor antes do dia em que essa calamidade do arcebispado de Cantuária veio desabar sobre mim. Não puderam ignorá-lo aqueles que, naquele dia, viram de perto o meu rosto. Mais semelhante a um cadáver do que a um homem vivo, eu estava pálido de consternação e de dor. A essa eleição, ou, antes, a essa violência, resisti até agora, digo-o em verdade, tanto quanto me foi possível. Mas agora, a gosto ou a contragosto, eis-me forçado a reconhecer cada vez mais claramente que os desígnios de Deus são contrários aos meus esforços, de tal sorte que nenhum meio me resta de lhes escapar. Vencido menos pela violência dos homens do que pela violência de Deus, contra quem prudência alguma poderia prevalecer, depois de fazer todos os esforços em meu poder para que esse cálice se afaste de mim sem que eu o beba, não vejo outra determinação a tomar senão a de renunciar ao meu senso próprio, à minha vontade, e entregar-me inteiramente ao juízo e a vontade de Deus.

Leão XIII

2. Certamente, a Nós também não faltavam numerosos e sérios motivos para Nos furtarmos ao fardo. Sem contar que, em razão da Nossa pequenez, a nenhum título podíamos considerar-Nos digno das honras do Pontificado, como não Nos sentirmos profundamente comovido vendo-Nos escolhido para suceder àquele que, durante vinte e seis anos, ou pouco falta, em que governou a Igreja com sabedoria consumada, deu mostras de tal vigor de espírito e de tão insignes virtudes, que se impôs à admiração dos próprios adversários e, pelo brilho das obras, imortalizou a sua memória?

Situação calamitosa do mundo.

3. Além disto, e para passar em silêncio muitas outras razões, Nós experimentávamos uma espécie de terror em considerar as condições funestas da humanidade na hora presente. Pode-se ignorar a doença profunda e tão grave que, neste momento muito mais do que no passado, trabalha a sociedade humana, e que, agravando-se dia a dia e corroendo-a até à medula, arrasta-a à sua ruína? Essa doença, Veneráveis Irmãos, vós a conheceis, e é, para com Deus, o abandono e a apostasia; e, sem dúvida, nada há que leve mais seguramente à ruína, consoante essa palavra do profeta: Eis que os que se afastam de vós perecerão (Sl 72,27). A tamanho mal Nós compreendíamos que, em virtude do múnus pontifical a Nós confiado, competia-nos dar remédio; achávamos que a Nós se dirigia esta ordem de Deus: Eis que hoje te estabeleci sobre as nações e os reinos para arrancares e para destruíres, para edificares e para plantares (Jer 1,10); mas, plenamente cônscio da Nossa fraqueza, Nós temíamos assumir uma obra eriçada de tantas dificuldades, e que, no entanto, não admite delongas.

Restaurar tudo em Cristo.

Contudo, já que a Deus aprouve elevar a Nossa baixeza até esta plenitude de poder, Nós haurimos coragem n’Aquele que nos conforta; e, pondo mãos a obra, sustentado pela força divina, declaramos que o nosso fito único, no exercício do Sumo Pontificado, é restaurar tudo em Cristo (Ef 1,10) a fim de que Cristo seja tudo e em tudo (Col 3,14).

4. Haverá, sem dúvida, quem, aplicando às coisas divinas a curta medida das coisas humanas, procure perscrutar os nossos pensamentos íntimos e torcê-los às suas vistas terrenas e aos seus interêsses de partido. Para cortar com essas vãs tentativas, em toda verdade afirmamos que não queremos ser, e que, com o socorro divino, não havemos de ser, no meio das sociedades humanas, outra coisa senão o ministro de Deus que nos revestiu da sua autoridade. Os interêsses D’Ele são os Nossos interêsses; consagrar-lhes as Nossas forças e a Nossa vida, tal é a nossa resolução inabalável. E é por isto que, se Nos pedirem um lema que traduza o próprio fundo de Nossa alma, jamais daremos outro senão este: restaurar todas as coisas em Cristo.

5. Querendo, pois, empreender e prosseguir esta grande obra, Veneráveis Irmãos, o que redobra o Nosso ardor é a certeza de que Nos sereis nisso valorosos auxiliares. Se duvidássemos disto, pareceríamos ter-vos, bem erradamente aliás, por mal informados ou indiferentes, em face da guerra ímpia que foi suscitada e que em quase toda a parte vai prosseguindo contra Deus. Nos nossos dias, sobejamente verdadeiro é que as nações fremiram e os povos meditaram projetos insensatos (Sl 2,1) contra o seu Criador; e quase comum se tornou este grito dos seus inimigos: Retirai-vos de nós (Job 21,14). Daí, na maioria, uma rejeição completa de todo o respeito de Deus. Daí hábitos de vida, tanto privada como publica, em que nenhuma conta se faz da soberania de Deus. Bem mais, não há esforço nem artifício que se não ponha por obra para abolir inteiramente a lembrança d’Ele, e até a sua noção.

Audácia dos maus. “o homem usurpou o lugar do criador”

6. Quem pesa estas coisas tem direito de temer que uma tal perversão dos espíritos seja o começo dos males anunciados para o fim dos tempos, e como que a sua tomada de contacto com a terra, e que verdadeiramente o filho de perdição de que fala o Apóstolo (2 Tess 2,3) já tenha feito o seu advento entre nós, tamanha é a audácia e tamanha a sanha com que por toda parte se lança o ataque à religião, com que se investe contra os dogmas da fé, com que se tende obstinadamente a aniquilar toda a relação do homem com a Divindade! Em compensação, e é este, no dizer do mesmo Apóstolo, o caráter próprio do Anticristo, com uma temeridade sem nome o homem usurpou o lugar do Criador, elevando-se acima de tudo o que traz o nome de Deus. E isso a tal ponto que, impotente para extinguir completamente em si a noção de Deus, ele sacode entretanto o jugo da sua majestade, e dedica a si mesmo o mundo visível à guisa de templo, onde pretende receber as adorações dos seus semelhantes. Senta-se no templo de Deus, onde se mostra como se fosse o próprio Deus (2 Tess 2,2).

Vitória certa de Deus.

7. Qual venha a ser o desfecho desse combate travado contra Deus por uns fracos mortais, nenhum espírito sensato pode pô-lo em dúvida. Certamente, ao homem que quer abusar da sua liberdade lícito é violar os direitos e a autoridade suprema do Criador; mas ao Criador fica sempre a vitória. E ainda não é dizer o bastante: a ruína paira mais de perto sobre o homem justamente quando mais audacioso ele se ergue na esperança do triunfo. É o de que o próprio Deus nos adverte nas Sagradas Escrituras. Dizem elas que Ele fecha os olhos sobre os pecados dos homens (Sab 11,24), como que esquecido do seu poder e da sua majestade; mas em breve, após essa aparência de recuo, acordando como um homem cuja força a embriaguez aumentou (Sl 77,65), Ele quebra a cabeça dos seus inimigos (Sl 67,22), afim de que todos saibam que o Rei de toda a terra é Deus (Sl 46,8), e afim de que os povos compreendam que não passam de homens (Sl 9,20).

Deus exige nossa colaboração.

8. Tudo isso, Veneráveis Irmãos, com fé certa sustentamos e esperamos. Mas esta confiança não nos dispensa, naquilo que de nós depende, de apressarmos a obra divina, não somente por uma oração perseverante: Levantai-vos, Senhor, e não permitais que o homem se prevaleça da sua força (Sl 9,19), mais ainda, e é o que mais importa, pela palavra e pelas obras, em plena luz, afirmando e reivindicando para Deus a plenitude do seu domínio sobre os homens e sobre toda criatura, de sorte que os seus direitos e o seu poder de mandar sejam reconhecidos por todos com veneração, e praticamente respeitados.

O partido de Deus.

9. Cumprir esses deveres não é apenas obedecer às leis da natureza, é trabalhar também para vantagem do gênero humano. De feito, Veneráveis Irmãos, quem poderia deixar de sentir a sua alma presa de temor e de tristeza em vendo a maioria dos homens, enquanto, por outro lado, se exaltam, e com justa razão, os progressos da civilização, vendo-os desencadear-se com tal encarniçamento uns contra os outros, que se diria um combate de todos contra todos? Sem dúvida, o desejo da paz está em todos os corações, e não há ninguém que não a chame por todos os seus anseios. Mas essa paz, insensato de quem a busca fora de Deus; porquanto expulsar a Deus é banir a justiça; e, afastada a justiça, toda a esperança de paz torna-se uma quimera. A paz é obra da justiça (Is 32,17). Pessoas há, e, não o ignoramos, em grande número, as quais, impelidas pelo amor da paz, isto é, da tranqüilidade da ordem, se associam e se agrupam para formarem o que elas chamam de partido da ordem. Ai! Vãs esperanças, trabalho perdido! De partidos de ordem capazes de restabelecer a tranqüilidade no meio da perturbação das coisas, só há um: o partido de Deus. É, pois, este que nos cumpre promover; é a ele que nos cumpre trazer o maior número de adeptos possível, por menos que tenhamos a peito a segurança publica.

10. Todavia, Veneráveis Irmãos, essa volta das nações ao respeito da majestade e da soberania divina, por mais esforços, aliás, que façamos para realizá-lo, não advirá senão por Jesus Cristo. De feito, o Apóstolo adverte-nos que ninguém pode lançar outro fundamento senão aquele que foi lançado e que é o Cristo Jesus (I Cor 3,11). Só a Ele foi que o Pai santificou e enviou a este mundo (Jo 10, 36), esplendor do Pai e figura da sua substância (Heb 1,3), verdadeiro Deus e verdadeiro homem sem o qual ninguém pode conhecer a Deus como convém, pois ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo (Mt 11,27).

Reconduzir os homens ao império de Cristo.

11. Donde se segue que restaurar tudo em Cristo e reconduzir os homens à obediência divina são uma só e mesma coisa. E é por isto que o fito para o qual devem convergir todos os nossos esforços é reconduzir o gênero humano ao império de Cristo. Feito isto, o homem achar-se-á, por isso mesmo, reconduzido a Deus. Mas – queremos dizer – não um Deus inerte e descuidoso das coisas humanas, como nos seus loucos devaneios o forjaram os materialistas, senão um Deus vivo e verdadeiro, em três pessoas na unidade de natureza, autor do mundo, estendendo a todas as coisas a sua infinita Providência, enfim legislador justíssimo que pune os culpados e assegura às virtudes a sua recompensa.

A via é a Igreja.

12. Ora, onde está a via que nos dá acesso a Jesus Cristo? Está debaixo dos nossos olhos: é a Igreja. Diz-no-lo com razão São João Crisóstomo: a Igreja é a tua esperança, a Igreja é a tua salvação, a Igreja é o teu refugio (Hom. de capto Eutropio, n. 6).

13. Foi para isso que Cristo a estabeleceu, depois de adquiri-la ao preço do seu sangue; foi para isso que Ele lhe confiou a sua doutrina e os preceitos da sua lei, prodigalizando-lhe ao mesmo tempo os tesouros da graça divina para a santificação e salvação dos homens.

14. Vedes, pois, Veneráveis Irmãos, que obra nos é confiada, a Nós e a vós. Trata-se de reconduzir as sociedades humanas, desgarradas longe da sabedoria de Cristo, reconduzi-las à obediência da Igreja; a Igreja, por seu turno, submetê-las-á a Cristo, e Cristo a Deus. E, se pela graça divina Nos for dado realizar esta obra, teremos a alegria de ver a iniqüidade ceder lugar à justiça, e folgaremos de ouvir uma grande voz dizendo do alto dos céus: Agora é a salvação, e a virtude, e o reino de nosso Deus e o poder de seu Cristo (Apoc. 12,10).

15. Todavia, para que o resultado corresponda aos Nossos votos, mister se faz, por todos os meios e à custa de todos os esforços, desarraigar inteiramente essa detestável e monstruosa iniqüidade própria do tempo em que vivemos e pela qual o homem se substitui a Deus. Restabelecer na sua antiga dignidade as leis santíssimas e os conselhos do Evangelho; proclamar bem alto as verdades ensinadas pela Igreja sobre a santidade do matrimônio, sobre a educação da infância, sobre a posse e o uso dos bens temporais, sobre os deveres dos que administram a coisa pública; restabelecer, enfim, o justo equilíbrio entre as diversas classes da sociedade segundo as leis e as instituições cristãs.

16. Tais são os princípios que, para obedecer à divina vontade, Nós Nos propomos aplicar durante todo o curso do Nosso Pontificado e com toda a energia de Nossa alma.

17. O vosso papel, Veneráveis Irmãos, será secundar-Nos pela vossa santidade, pela vossa ciência, pela vossa experiência, e sobretudo pelo vosso zelo da glória de Deus, não visando a nada mais do que a formar em todos Jesus Cristo (Gal 4,19).

OS MEIOS:

1) Formar Cristo nos Sacerdotes.

18. Que meios importa empregar para atingir um fim tão elevado? Parece supérfluo indicá-los, tanto eles se apresentam à mente por si mesmos. Sejam os vossos primeiros cuidados formar Cristo naqueles que, pelo dever da sua vocação, são destinados a formá-lo nos outros. Queremos falar dos sacerdotes, Veneráveis Irmãos. Porquanto todos aqueles que são honrados com o sacerdócio devem saber que tem, entre os povos com que convivem, a mesma missão que Paulo testava haver recebido, quando pronunciava estas ternas palavras: Meus filhinhos, a quem eu gero de novo, até que Cristo se forme em vós (Gal 4). Ora, como poderão eles cumprir um tal dever, se eles próprios não forem primeiramente revestidos de Cristo? e revestidos até poderem dizer com o Apóstolo: Vivo, já não eu, mas Cristo vive em mim (Gal 2,20). Para mim Cristo é a minha vida (Fil 1,21). Por isto, embora todos os fiéis devam aspirar ao estado de homem perfeito, à medida da idade da plenitude de Cristo (Ef 4,3), essa obrigação incumbe principalmente àquele que exerce o ministério sacerdotal. Por isto é ele chamado ‘outro Cristo’; não somente porque participa do poder de Jesus Cristo, mas porque deve imitar-Lhe as obras e, destarte, reproduzir-Lhe a imagem em si mesmo.

Cuidados dos seminaristas.

19. Se assim é, Veneráveis Irmãos, quão grande não deve ser a vossa solicitude para formar o clero na santidade! Não há negócio que não deva ceder o passo a este. E a conseqüência é que o melhor e o principal do vosso zelo deve aplicar-se aos vossos Seminários, para introduzir neles uma tal ordem e lhes assegurar um tal governo, que neles se veja florescerem lado a lado a integridade do ensino e a santidade dos costumes. Fazei do Seminário as delícias do vosso coração, e não descureis coisa alguma daquilo que, na sua alta sabedoria, o Concílio de Trento prescreveu para garantir a prosperidade dessa instituição. Quando chegar o tempo de promover às Sagradas Ordens os jovens candidatos, ah! Não vos esqueçais daquilo que São Paulo escrevia a Timóteo: Não imponhas precipitadamente as mãos a ninguém (I Tim. 5,22); bem vos persuadindo de que, as mais das vezes, tais quais forem aqueles que admitirdes ao sacerdócio, tais serão também, depois, os fiéis confiados à solicitude deles. Não olheis, pois, a nenhum interêsse particular, seja de que natureza fôr; mas tende ùnicamente em mira Deus, a Igreja, a felicidade eterna das almas, a fim de, como nos adverte o Apóstolo, evitardes participar dos pecados de outrem (Ibid.).

Cuidados dos novos Sacerdotes.

20. Alias, nem por isto escapem às solicitudes do vosso zelo os novos padres que saem do Seminário. Estreitai-os, recomendam-vo-lo do mais profundo de Nossa alma, estreitai-os com freqüência ao vosso coração, que deve arder de um fogo celeste; aquecei-os, inflamai-os, afim de que eles, não mais aspirem senão a Deus e à conquista das almas. Quanto a Nós, Veneráveis Irmãos, velaremos com o maior cuidado por que os membros do clero não se deixem surpreender pelas manobras insidiosas, de uma certa ciência nova que se enfeita com a mascara da verdade e onde se não respira o perfume de Jesus Cristo; ciência mendaz que, com o favor de argumentos falazes e pérfidos, se esforça por abrir caminho aos erros do racionalismo ou do semi-racionalismo, e contra a qual o Apóstolo já advertia ao seu caro Timóteo premunir-se, quando lhe escrevia: Guarda o depósito, evitando as novidades profanas na linguagem, tanto quanto as objeções de uma ciência falsa, cujos partidários com todas as suas promessas faliram na fé (I Tim 6,20ss). Não quer isto dizer que não julguemos dignos de elogios esses padres novos que se consagram a úteis estudos em todos os ramos da ciência, e assim se preparam para defender melhor a verdade e para refutar mais vitoriosamente as calúnias dos inimigos da fé. Não podemos, todavia, dissimulá-lo, e declaramo-lo, mesmo muito abertamente: as Nossas preferências são e serão sempre por aqueles que, sem descurarem as ciências eclesiásticas e profanas, se votam mais particularmente ao bem das almas no exercício dos diversos ministérios que ficam bem ao padre animado de zelo pela honra divina.

2) Necessidade do Ensino Religioso.

21. É para o Nosso coração uma grande tristeza e uma contínua dor (Rom. 9,2) verificar que se pode aplicar aos nossos dias esta queixa de Jeremias: As crianças pediram pão, e não havia ninguém para lhes partir esse pão (Jer. 4,4). Efetivamente, não falta no clero quem, cedendo a gostos pessoais, dispenda a sua atividade em coisas de uma utilidade mais aparente do que real; ao passo que menos numerosos são talvez os que, a exemplo de Cristo, tomem para si mesmos as palavras do Profeta: O Espírito do Senhor deu-me a unção, enviou-me a evangelizar os pobres, a curar os que têm o coração partido, a anunciar os cativos a libertação, e a luz aos cegos (Lc 4,18-19). E, no entanto, visto que o homem tem por guia a razão e a liberdade, a ninguém escapa que o principal meio de restituir a Deus o seu império sobre as almas é o ensino religioso. Quantos que são hostis a Jesus Cristo, que horrorizam a Igreja e o Evangelho, bem mais por ignorância do que por malícia, e dos quais se poderia dizer: Blasfemam tudo o que ignoram (Jud. 10)! Estado de alma que verificamos não sòmente no povo e no seio das classes mais humildes, as quais a sua própria condição torna mais acessíveis ao erro, mas até nas classes elevadas, e naqueles mesmos que possuem, aliás, uma instrução pouco comum. Daí, em muitos, o deperecimento da fé; pois não se deve admitir que sejam os progressos da ciência que a sufoquem; é, muito antes, a ignorância; de tal sorte que, onde quer que a ignorância é maior, aí também a incredulidade faz maiores devastações. Foi por isto que Cristo deu aos apóstolos este preceito: Ide e ensinai todas as nações (Mt 28,19).

3) A Caridade Cristã.

22. Mas, para que esse zelo em ensinar produza os frutos que dele se esperam e sirva para formar Cristo em todos, nada mais eficaz do que a caridade; gravemos isto fortemente na nossa memória, ó Veneráveis Irmãos, pois o Senhor não está na comoção (III Rs 19,11). Debalde esperaríamos atrair as almas a Deus por um zelo impregnado de azedume; exprobrar duramente os erros, e repreender os vícios com aspereza, muitíssimas vezes causa mais dano do que proveito. Verdade é que o Apóstolo, exortando Timóteo, lhe dizia: Acusa, suplica, repreende, mas acrescentava: com toda paciência (II Tim 4,2). Nada mais conforme aos exemplos que Jesus Cristo nos deixou. É Ele quem nos dirige este convite: Vinde a mim vós todos que sofreis e que gemeis sob o fardo, e eu vos aliviarei (Mt 11,28). E, no seu pensamento, esses enfermos e esses oprimidos outros não eram senão os escravos do erro e do pecado. De feito, que mansidão nesse divino Mestre! Que ternura, que compaixão para com todos os infelizes! O seu divino Coração é-nos admiràvelmente pintado por Isaías nestes termos: Pousarei sobre ele o meu espírito; ele não contestará nem elevará a voz: jamais acabará de quebrar o caniço meio partido, nem extinguirá a mecha que ainda fumega (Is 42,1ss). Essa caridade paciente e benigna (I Cor 13,4) deverá ir ao encontro daqueles mesmos que são nossos adversários e nossos perseguidores. Eles nos maldizem, assim o proclamava São Paulo, e nós bendizemos; perseguem-nos, e nós suportamos; blasfemam-nos, e nós oramos (I Cor. 4,12,ss). Talvez que, afinal de contas, eles se mostrem piores do que são realmente. O contacto com os outros, os preconceitos, a influência das doutrinas e dos exemplos, enfim o respeito humano, conselheiro funesto, inscreveram-nos no partido da impiedade; mas, no fundo, a vontade deles não é tão depravada como eles se comprazem em fazer crer. Porque então não haveríamos de esperar que a chama da caridade dissipe enfim as trevas da alma deles, e faça reinar nelas, com a luz, a paz de Deus? Mais de uma vez o fruto do nosso trabalho talvez se faça esperar; mas a caridade não se cansa, persuadida de que Deus mede a suas recompensas não pelos resultados, mas pela boa vontade.

Todos os fiéis devem colaborar.

23. Entretanto, Veneráveis Irmãos, absolutamente não é Nosso pensamento que, nessa obra tão árdua da renovação dos povos por Cristo, vós e o vosso clero fiqueis sem auxiliares. Sabemos que Deus recomendou a cada um o cuidado do seu próximo (Ecli 17,12). Não são, pois, sòmente os homens revestidos do sacerdócio, mas sim todos os fiéis sem exceção, que devem dedicar-se aos interêsses de Deus e das almas: certamente, não cada um ao sabor das suas vistas e das suas tendências, mas sempre sob a direção e segundo a vontade dos Bispos, pois o direito de mandar, de ensinar, de dirigir não pertence a ninguém mais na Igreja senão a vós, estabelecidos pelo Espírito Santo para regerdes a Igreja de Deus (At 20,28).

a) Nas associações.

24. Associar-se entre católicos com intuitos diversos, mas sempre para o bem da religião, é coisa que, de há longo tempo, tem merecido a aprovação e as bênçãos dos Nossos predecessores. Nós também não hesitamos em louvar tão pela obra, e vivamente desejamos que ela se difunda e floresça por toda parte, nas cidades como nos campos. Mas, ao mesmo tempo, entendemos que essas associações tenham por primeiro e principal objeto fazer que os que nelas se alistam cumpram fielmente os deveres da vida cristã. Pouco importa, em verdade, agitar sutilmente múltiplas questões e dissertar com eloqüência sobre direitos e deveres, se tudo isso não redunda na ação. A ação, eis o que reclamam os tempos presentes; mas uma ação que se aplique sem reserva à observância integral e escrupulosa das leis divinas e das prescrições da Igreja, à profissão aberta e ousada da religião, ao exercício da caridade sob todas as suas formas, sem preocupação alguma de si mesmo nem das suas vantagens terrenas. Esplêndidos exemplos deste gênero dados por tantos soldados de Cristo mais depressa abalarão e arrastarão as almas, do que a multiplicidade das palavras e do que a sutileza das discussões; e ver-se-ão, sem dúvida, multidões de homens, calcando aos pés o respeito humano, desprendendo-se de todo preconceito e de toda hesitação, aderir a Cristo e promover, por seu turno, o conhecimento e o amor de Cristo, penhor da verdadeira e sólida felicidade.

b) Pelo fervor da vida cristã.

25. Certamente, no dia em que, em cada cidade, em cada aldeia, a lei do Senhor for cuidadosamente guardada, as coisas santas forem cercadas de respeito, os sacramentos freqüentados, em suma, tudo o que constitui a vida cristã for reposto em honra, nada mais faltará, Veneráveis Irmãos, para que Nós contemplemos a restauração de todas as coisas em Cristo. E não se creia que tudo isso se refere somente à aquisição dos bens eternos; os interêsses temporais e a prosperidade pública também se ressentirão mui felizmente disso. Porquanto, uma vez obtidos esses resultados, os nobres e os ricos saberão ser justos e caridosos para com os pequenos, e estes suportarão na paz e na paciência as privações da sua pouca afortunada condição; os cidadãos obedecerão não mais ao arbítrio, porém às leis; todos considerarão como um dever o respeito e o amor para com os que governam, e cujo poder só vem de Deus (Rom 13,1).

A Igreja deve ser livre

26. Há mais. Assim sendo, a todos será manifesto que a Igreja, tal como foi instituída por Jesus Cristo, deve gozar de plena e inteira liberdade, e não ser submetida a nenhuma dominação humana; e que Nós mesmos, reivindicando essa liberdade, não somente salvaguardamos os direitos sagrados da religião, mas provemos também ao bem comum e à segurança dos povos: a piedade é útil a tudo (I Tim 4,8), e, onde quer que ela reine, o povo está verdadeiramente assente na plenitude da paz (Is 32,18).

Conclusão

27. Que Deus, rico em misericórdia (Ef 2,4), apresse, na sua bondade, essa renovação do gênero humano em Jesus Cristo, visto não ser isso obra nem daquele que quer, nem daquele que corre, mas do Deus das misericórdias (Rom 9,16). E nós todos, Veneráveis Irmãos, peçamos-lhe esta graça em espírito de humildade (Dan 3,39), por uma oração instante e contínua, apoiada nos méritos de Jesus Cristo. Recorramos também à intercessão poderosíssima da divina Mãe. E, para mais largamente obtê-la, tomando ensejo deste dia em que vos dirigimos estas Letras, e que foi instituído para solenizar O santo Rosário, confirmamos todas as ordenações pelas quais o Nosso predecessor consagrou o mês de outubro à augusta Virgem, e prescreveu em todas as igrejas a recitação pública do Rosário. Exortamos-vos, além disso, a tomardes também por intercessores o puríssimo Esposo de Maria, padroeiro da Igreja Católica, e os príncipes dos apóstolos, São Pedro e São Paulo.

28. Para que todas estas coisas se realizem segundo os Nossos desejos, e para que todos os vossos trabalhos sejam coroados de êxito, Nós imploramos sobre vós, em grande abundância, os dons da graça divina. E, como testemunho da terna caridade em que voz abraçamos, a vós e a todos os fiéis pela Divina Providência confiados aos vossos cuidados, Nós vos concedemos em Deus, com abundância de coração, Veneráveis Irmãos, bem como ao vosso clero e ao vosso povo, a Benção Apostólica.

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 4 de outubro do ano de 1903, primeiro do Nosso Pontificado.

PIO X, PAPA.


Fonte:
- http://www.fsspx-brasil.com.br/page%2006-7-e-supremi-apostolatus.htm#01%20topo%20de%20pagina%20t%EDtulo

- http://www.vatican.va/holy_father/pius_x/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_04101903_e-supremi_en.html (em inglês)

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