Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade. (II Coríntios 13,8)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Sermão de Todos os Santos (11 de 11)

XI

Temos visto como em todos os estados, em todos os ofícios e em todas as fortunas podemos alcançar a maior fortuna de todas, que é ser santos; temos visto que o instrumento necessário para ser santos é só e unicamente o coração, contanto que seja puro e limpo; só resta para complemento da facilidade com que vos prometi que todos podemos ser santos, declarar quão facilmente podem todos conseguir esta mesma limpeza. A limpeza do coração consiste em estar limpo de pecados, e não há nenhum pecador, por grande que seja, que não possa conseguir esta limpeza de coração tão breve e tão facilmente que, se entrou nesta igreja pecador, não possa sair dela santo. Presentou-se a Cristo um leproso, e pondo-se de joelhos: genu flexo, disse assim: Domine, si vis, potes me mundare (Mt. 8,2 s): Senhor, se quereis, bem me podeis alimpar desta lepra. — Respondeu o Senhor: Vo lo, mundare: Quero, sê limpo — e no mesmo ponto ficou limpo daquele tão feio e tão asqueroso mal: Et confestim mundata est lepra ejus. Pode haver maior brevidade, pode haver maior facilidade de conseguir a limpeza? Parece que não. Pois eu vos digo, e é de fé, que muito mais breve e muito mais facilmente podeis conseguir a limpeza de coração se o mesmo coração quiser. A lepra do coração, mais feia, mais imunda e mais asquerosa que a do corpo é o pecado. E para que vejais quanto mais fácil e mais brevemente se consegue a limpeza desta lepra, ponhamos o mesmo leproso que Cristo curou, à vista de um coração também leproso pelo pecado, e veremos qual consegue a limpeza com maior facilidade.

Estava leproso o coração de Davi, não outro, senão aquele coração de quem ele disse com os mesmos termos do nosso texto: Cor mundum crea in me, Deus (12). E estava tão penetrado da lepra, que havia já um ano que perseverava no pecado, quando o exortou o profeta Natã a que considerasse o estado miserável de sua consciência, e se convertesse de todo coração a Deus, de quem vivia tão esquecido. Fê-lo assim Davi, mas que fez? Somente disse: Peccavi (2 Rs. 12,13): Pequei, — e não tinha bem pronunciado esta palavra quando o profeta lhe disse que já estava perdoado e restituído à graça de Deus: Dominus quoque transtulit peccatum tuum (13). Comparai-me agora a Davi com o leproso, e vede qual conseguiu a limpeza da lepra mais fácil e mais brevemente. O leproso pôs-se de joelhos: genu flexo e Davi não se ajoelhou; o leproso disse cinco palavras: Si vis, potes me mundare, — Davi não disse mais que uma: Peccavi; e com tudo isto o leproso não tinha ainda conseguido a limpeza, antes estava duvidoso dela: Se vis; e Davi já tinha conseguido e estava certificado disso da parte do mesmo Deus: Dominus quoque transtulit peccatum tuum. Logo, muito mais fácil e muito mais brevemente conseguiu o coração de Davi a limpeza da sua lepra, do que o leproso a da sua. Mas quando o conseguiu o leproso? Quando Cristo lhe respondeu: Volo, mundare: Quero, sê limpo. — Agora vos peço eu que me respondais a mim, e eu vos prometo que com a vossa resposta ficarão limpos os vossos corações ainda mais brevemente que o leproso com a resposta de Cristo, porque a resposta de Cristo comunicou a limpeza ao leproso com duas palavras, e a vossa resposta há de comunicar a limpeza aos vossos corações só com uma sílaba. Respondei, pois, cristãos, ao que vos pergunto. Não vos pesa muito de ter ofendido a um Deus de infinita majestade e bondade, por ser ele quem é? Não vos pesa e vos arrependeis entranhavelmente de ter sido ingratos a um Deus que vos criou, e vos deu o ser, e vos remiu com seu sangue? Não detestais de todo coração todos vossos pecados, por serem ofensas suas? Não tendes nesta hora firmes propósitos de nunca mais o ofender? Sim? Pois este sim, dito de todo coração, basta para que o mesmo coração fique e esteja já limpo de todos seus pecados; e esse sim, sendo uma só sílaba, fez nos vossos corações o mesmo efeito, e mais maravilhoso ainda, que as palavras de Cristo no leproso.

Pois, se na limpeza do coração consiste o ser santos, e esta limpeza de coração se pode conseguir tão facilmente só com um movimento do mesmo coração, que coração haverá tão fraco, ou que homem de tão fraco e de tão pouco coração que não se resolva a ser santo? Se o ser santo fora uma coisa muito dificultosa, bem nos merecia o céu e a bem-aventurança que, pela gozar eternamente, se venceram todas as dificuldades. Mas é tão fácil que, sem vos bulir do lugar onde estais, e sem mover pé nem mão, nem fazer ou padecer coisa alguma, só com um ato do coração, e o ato mais natural, mais fácil e mais suave do mesmo coração, que é amar, e amar o sumo bem, podemos ser santos. Exorta Moisés a amar a Deus de todo coração, que é o mandamento em que se encerram todos, e conclui assim. Mandatum hoc non supra te est, neque procul positum (Dt. 30, 11): Este mandamento não é sobre nós, nem está longe de nós. — Se fora sobre nós e estivera lá no céu: In caelo situm (Ibid. 12), tê-lo-íamos por impossível; se estivera longe de nós, e com muito mar em meio: Trans mare positum (Ibid. 13), tê-lo-íamos por muito dificultoso. Mas é muito fácil e está muito perto, porque está o cumprimento dele dentro do nosso coração: Sed juxta te est sermo valde in corde tuo (14). Moisés, que não prometia o céu, disse que estava perto de nós o cumprimento deste preceito; mas Cristo, que promete o céu, ainda disse mais e melhor, porque diz que o preceito, e o céu, e o merecimento dele não só está perto de nós, senão dentro de nós: Regnum Dei intra vos est (15). Cuidamos que o céu, onde subiram os santos, está muito longe, e enganamo-nos: o céu não está longe, senão muito perto, e mais ainda que perto, porque está dentro de nós, e dentro do que está mais dentro, que é o coração. E que haja almas, e tantas almas, que tendo o céu dentro de si na vida, fiquem fora do céu na morte, e que podendo tão facilmente purificar o coração e ser santas, só porque não querem o não sejam? Se para amar a Deus e ganhar o céu houvéramos de atravessar os mares tormentosos e contrastar com todos os elementos, pouco era que se fizesse pela bem-aventurança certa do céu o que tantos fazem por tão pequenos interesses da terra; mas, tendo-nos Cristo tão facilitada a bem-aventurança, que entre a mesma bem-aventurança e o coração não haja mais que a condição de ser limpo: Beati mundo corde, e, podendo o mesmo coração alcançar essa limpeza em um instante de tempo e com um ato de amor, e de amor ao sumo bem, que não sejamos todos santos, e não queiramos ser bem-aventurados?

Quero acabar esta admiração com um ai de S. Bernardo, pregando neste mesmo dia aos seus religiosos, o qual a eles e a todos pode servir de exemplo e de confusão: Beati mundo corde, quoniam ipsi Deus videbunt: Beati plane, et omnino beati qui videbunt, in quem desiderant Angeli prospicere. Tibi dixit cormeum, exquaesivit te facies mea, faciem tuam, Domine, requiram. Quid enim mihi est in caelo, et a te quid volui super terram? Defecit caro mea et cor meum, Deus cordis mei et pars mea, Deus in aeternum: quando adimplebis me laetitia cum vultu tuo? Vae mihi ab immuditia cordis mei, qua impedien te, nedum mereor ad beatam illam visionem admitti. Quer dizer: Bem-aventurados os limpos de coração, e verdadeiramente bem-aventurados, porque eles verão aquela face divina, a qual os anjos sempre estão vendo e sempre estão desejando ver. A vós, Senhor, diz o meu coração: Nenhuma coisa desejo, senão ver-vos de face a face, porque nenhuma outra há para mim, nem na terra nem no mesmo céu. Desmaia o meu coração nas ânsias deste desejo, porque só o Deus do meu coração é o único e todo o bem que o pode satisfazer. E quando chegará aquela ditosa hora em que, com a vista de vosso rosto, fique satisfeito? Mas, ai de mim — diz Bernardo — que pela pouca limpeza de meu coração — quero-o dizer com as suas próprias palavras — ai de mim, que a impureza e imundícia de meu coração me impede e faz indigno de ser admitido àquela bem-aventurada vista! Vae mihi ab immunditia cordis mei, qua impediente, nedum mereor ad beatam illam visionem admitti. Se isto dizia de si um coração tão puro, um coração tão santo, um coração tão elevado, tão estático, tão seráfico e tão abrasado no amor divino, se isto dizia no coração de Bernardo a humildade, que dirá noutros corações a verdade? Se o corpo estiver no claustro, e o coração no mundo? Se o coração, depois de se dar a Deus, estiver sacrificado ao ídolo? Se o coração, que devera estar cheio de caridade e amor de Deus, estiver ardendo em amor que não é caridade? Se as palavras, que saem do coração, e os pensamentos, que não saem, forem envoltos em impureza? Ai de tal coração e de quem o tem: Vae mihi ab immunditia cordis mei! Este vae e este ai de São Bernardo em dia de Todos os Santos, fique por matéria de meditação a todos os que o querem ser. Advirtam, porém, e tenham por certo, que se este ai de conhecimento e temor se converter em ai de dor, em ai de pesar, em ai de verdadeiro e firma arrependimento, esse mesmo ai, dito de todo coração, com ser uma só silaba — como dizia — bastará para purificar de tal sorte o mesmo coração que, sendo nesta vida santificado por graça, mereça ser na outra beatificado por glória: Beati mundo corde.

Notas:
(12) Cria em mim, ó Deus, um coração puro (Sl. 50,12)

(13) Também o Senhor transferiu o teu pecado (2 Rs. 12,13).

(14)Mas esta palavra está muito perto de ti, no teu coração (Deut. 30,14).

(15) O reino de Deus está dentro de vós (Lc. 17,21).


Fonte:
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT2803025.html

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