Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade. (II Coríntios 13,8)

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (4 de 11)

IV

Depois do Padre, Filho e Espírito Santo, segue-se a Filha do Padre, a Mãe do Filho, a Esposa do Espírito Santo, a Virgem Santíssima, a qual como a mais santa entre todas as mais puras criaturas nos dirá melhor que todas quão grande bem é sermos santos. No capítulo vinte e quatro do Eclesiástico nos refere a mesma Senhora como Deus, que a escolheu por morada, lhe deu a herança de tudo quanto tinha vinculado ao povo de Israel, que era o morgado do mesmo Deus: Tunc praecepit et dixit mihi creator omnium; et qui creavit me requievit in tabernaculo meo, ei dixit mihi: In Israel haereditare (7). E que vos parece que escolheria e tomaria para si a Virgem Maria de toda a universidade de bens naturais e sobrenaturais deste imenso morgado? Só tomou o que era santo, e nenhuma outra coisa. Do que não era santo, posto que fosse precioso e estimado, não quis nada, porque tudo é nada; do que era santo, tomou tudo, porque só o ser santo é tudo. Ouçamos a mesma Senhora, e ponderemos o que diz com a atenção que suas palavras merecem. Primeiramente, do que pertence ao lugar, diz que escolhe uma cidade santa e uma casa santa, para nela servir a Deus em sua presença, sem nenhum outro cuidado: In habitatione sancta coram ipso ministravi, et in civitate sanctificata similiter requievi (8). E quanto ao que pertencia à pessoa, sendo tantos e tão excelentes os dotes naturais que Deus desde seu princípio tinha repartido com as mulheres famosas daquela nação, de tudo isto nenhum caso fez a Senhora, tudo deixou, tudo desprezou, e só tomou e quis para si a santidade de todos os santos: In plenitudine sanctorum detentio mea (Eclo. 24, 16): Detive-me — diz — na enchente de todos os santos — porque tudo o que não é ser santo pode inchar, mas não pode encher — aqui me detive, aqui parei, aqui insisti e não passei, nem tive para onde passar daqui.

Oh! quem me dera ter neste auditório todas as senhoras do mundo, tão prendadas e tão presas, tão tidas e tão retidas das vaidades do mesmo mundo, para que vissem o de que só se haviam de deixar prender e deter, à imitação da maior Senhora e Rainha de todas! Tudo quanto a apreensão e fantasia feminil estima e preza, viu a benditíssima Virgem no grande teatro de Israel, de que Deus a fizera herdeira: In Israel haereditare. Viu a nobreza do sangue, antiga e ilustre em Sara, soberana e real em Micol, mas não a deteve o esplendor da nobreza, nem lhe moveu ou alterou os espíritos. Viu a formosura servida e adorada em Raquel, buscada e preferida em Abisai, mas não a deteve a formosura, nem julgou por digna de ser vista a que leva após si os olhos. Viu a fecundidade grande e invejada em Lia, maior e mais desvanecida em Fenena, mas não a deteve o apetite natural de ser mãe, nem desejou perpetuar-se em mais vidas. Viu a riqueza doméstica em Rebeca, e os tesouros reais em Sulamites, mas não a deteve cobiça ou ambição de riquezas, porque tinha o coração em outros tesouros. Viu as galas e afeitas de Jesabel, e todo o valor do Oriente engastado nas jóias de Ester, mas não a deteve a aparência vã dos aparatos do corpo, como a que só cuidava em ornar o espírito. Viu a que o mundo chama ventura nas bodas não esperadas de Rute, e nas muito mais venturosas de Séfora, mas não a deteve o especioso laço das bodas, antes lhe fizeram horror as delícias do tálamo. Viu as vitórias e triunfos de Débora, e os despojos e troféus da famosa Judite, mas não a deteve a fama com o ruído de seus aplausos, nem afetou vitórias e triunfos. Viu, finalmente, coroada Abigail, e assentada Bersabée em igual trono com Salomão, mas não a deteve a soberania daquelas alturas, porque era mais alto o seu ânimo que os tronos, e de maior esfera que as coroas.

Pois, Senhora, se todos estes bens da natureza e da fortuna, se todas estas grandezas e felicidades da vida, que os homens tanto estimam, tanto prezam e tanto invejam, nem divididas, nem juntas vos encheram os olhos, se por todas passastes pisando-as, e nenhuma vos pareceu digna, nem de vos deter um momento, nem de vos fazer parar um passo, que é o que vistes, que só vos agradou, que é o que vistes, que só vos deteve ou teve mão, para que ali parassem os passos do vosso desejo, para que dali não passassem os vossos afetos? Vi a humildade, diz a Senhora, vi o desprezo de si e do mundo, vi o recolhimento, vi o silêncio, vi a modéstia, vi a temperança, vi a paciência, vi a fortaleza, vi a mortificação das paixões e a resignação da própria vontade, vi o amor de Deus e a caridade do próximo, vi, enfim, toda a santidade, virtudes e graça de que estiveram cheios os santos, e nesta enchente de santidade é que só tomei pé, nesta parei, nesta me detive e nesta me desenho: Et in plenitudine sanctorum detentio mea. Isto é o que diz de si a Mãe de Deus. E porque este foi o seu juízo e a sua eleição, por isso foi Mãe de Deus, não só porque estimou o ser santa mais que todas as coisas, mas porque deixou e desprezou todas as coisas para ser mais santa.

Notas:

(7) Então o Criador de tudo deu-me os seus preceitos, e falou-me, e aquele que me criou descansou no meu tabernáculo, e disse-me: Possui a tua herança em Israel (Eclo. 24,12 s).

(8) Exerci diante dele o meu ministério na morada santa, e repousei na Cidade Santa (Eclo. 24, 14 s).

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