Vamos aos homens, e perguntai a todos os que estão no céu que coisa é ser santos? A esta pergunta não quero responder com Escrituras nem com palavras, senão com obras. As coisas estimam-se pelo que valem e pelo que custam. Tudo o que fizeram e padeceram os santos, foi por ser santos. A esperança tão longa e tão constante dos patriarcas, a fé e paciência dos profetas, o zelo e pregação dos apóstolos, os tormentos e mortes dos mártires, as penitências e asperezas dos confessores, a continência e pureza das virgens: tudo santo, e tudo por ser santos. Mas não é esta a matéria que se haja de passar e escurecer com uma tão abreviada generalidade. Discorramos por cada uma das hierarquias dos santos, e vejamos quanto se empenharam por conseguir este nome.
Olhai para os patriarcas nos dois primeiros, e vereis a Isac lançado sobre a lenha, esperando com a garganta nua o rigor, por não dizer a desumanidade do golpe, e a Abraão com a espada em uma mão, para cortar a cabeça ao único filho, e como fogo na outra, para o queimar em holocausto e sepultar em cinzas. Podia haver maior resolução, nem mais heróico e deliberado empenho, assim na sujeição do filho ao pai, como na obediência do pai a Deus? O mesmo Deus confessou que não podia ser maior. Mas, se virdes que um anjo naquele mesmo flagrante tem mão no braço a Abraão, voltai os olhos para o de Jefté, armado doutra espada e do mesmo zelo, e vereis não suspenso, mas, executado o tremendo sacrifício, derramando o pai animoso com suas próprias mãos o sangue da inocente filha, também única, e sem herdeiro. E por que vos parece que se atreveram estes dois homens a uma tão espantosa e medonha ação, de que se estremece o amor e tapa os olhos a natureza? Abraão, por não quebrar um preceito, Jefté, por não faltar a um voto, e ambos por ser santos. Abraão podia duvidar, com grande fundamento, se um preceito tão novo e inaudito, e tão repugnante às promessas que o mesmo Deus lhe tinha feito, era ilusão; Jefté, com maior razão ainda, podia duvidar se o voto naquele caso obrigava, não sendo tal a sua tenção, nem lhe tendo vindo tal coisa ao pensamento; e, contudo, ambos seguiram a parte mais dificultosa e mais segura, por não deixar em escrúpulo a salvação, nem pôr em dúvida o ser santos.
Aos patriarcas seguem-se os profetas, e aos profetas os apóstolos. E se entre os profetas vos assombrais de ver um Isaías serrado pelo meio, e um Daniel na cova dos leões, e um Jonas engolido da baleia, nos apóstolos, que foram menos em número, vereis a Pedro crucificado, a Paulo degolado, a André aspado, a Felipe apedrejado, a Bartolomeu esfolado, a Mateus e Tomé alanceados, a Simão e Tadeu espedaçados, e todos, enfim, dando o sangue e a vida em testemunho da fé que pregaram, não só para ser santos eles em si, mas para fazer santos a outros.
E que direi eu de vós, ó fortíssimo e luzidíssimo exército dos mártires, tão infinito no número como nos esquisitos gêneros de martírios? Se entro no anfiteatro de Roma, vejo-vos lançados às feras, ou lançados aos Neros, aos Décios, aos Dioclecianos, aos Trajanos, mais feros que as mesmas feras. A muitos de vós reverenciaram os leões, os ursos, os tigres, mas a nenhum perdoou a vida a impiedade mais que brutal dos tiranos, sempre mais obstinados e furiosos. As pedras de Estêvão, as setas de Sebastião, as grelhas de Lourenço e Vicente já eram tormentos vulgares. Que máquinas e invenções de atormentar não excogitou a sevícia raivosa de se ver vencida, para combater e tentar vossa fortaleza? A uns mártires penduravam pelos cabelos, ou por um pé, ou por ambos, ou pelos dedos polegares, e assim, no ar e despidos, com azorragues de nervos rematados em pelotas de chumbo ou abrolhos de aço, os batiam e martelavam com tal força e continuação os cruéis e robustos algozes, que ao princípio açoitavam corpos, depois feriam as mesmas chagas ou uma só chaga, até que não tinham já que açoitar nem ferir. A outros, estirados e desconjuntados no ecúleo, ou estendidos na catasta, aravam ou cardavam os membros com pentes e garfos de ferro, a que propriamente chamavam escorpiões, ou metidos debaixo de grandes pedras de moinho, lhes espremiam como em lagar o sangue, e lhes moíam e emprensavam os ossos, até ficarem uma pasta confusa, sem figura nem semelhança do que dantes eram. A outros cobriam todos de pez, resina e enxofre, e, ateando-lhes o fogo, os faziam arder em pé como tochas ou luminárias nas festas dos ídolos, esforçando-se para este suplício com lhes dar a beber chumbo derretido. A outros, nos mais rigorosos frios do inverno, metiam em tanques enregelados, com banhos de água quente à vista, e liberdade de se passarem a eles, para que enfraquecesse o remédio os que não vencia o tormento. A outros coziam em couros, juntamente com serpentes e cães danados, e assim os lançavam ao mar, para que naquela estreita, medonha e asquerosa prisão, primeiro acabassem mordidos e atassalhados dos dentes venenosos, do que afogados das ondas. A outros escalavam vivos pelos peitos, e lhes arrancavam o coração e entranhas palpitantes, ou lhes atavam as mãos e os pés a quatro ramos grossos de árvores, dobrados a força e soltos ao mesmo tempo, com que súbita e violentissimamente os espedaçavam em quartos. A outros assentavam em cadeiras de ferro afogueado, a outros faziam andar descalços sobre lâminas ardentes, a outros metiam em caldeiras de azeite e alcatrão fervendo, a outros em bois de metal abrasado, a outros em fornalhas de chamas vivas. E tudo isto sofriam e suportavam aqueles valorosos cavaleiros de Cristo, não só com paciência e constância, mas com júbilo e alegria. Por quê? Só por ser e segurar o ser santos, como exclama a Igreja: Omnes sancti, quanta passi sunt tormenta, ut securi pervenirent ad palmam martyrii.
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