Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade. (II Coríntios 13,8)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (02 de 11)

II

Beati mundo corde.

A mais poderosa inclinação e o mais poderoso apetite do homem é desejar ser. Bem nos conhecia este natural o demônio, quando esta foi a primeira pedra sobre que fundou a ruína a nossos primeiros pais. A primeira coisa que lhe disse e que lhe prometeu foi que seriam: Eritis (Gên. 3,5), e este eritis, este sereis foi o que destruiu o mundo. Não está o erro em desejarem os homens ser, mas está em não desejarem ser o que importa. Uns desejam ser ricos, outros desejam ser nobres, outros desejam ser sábios, outros desejam ser poderosos, outros desejam ser conhecidos e afamados, e quase todos desejam tudo isto, e todos erram. Só uma coisa devem os homens desejar ser, que é ser santos. Assim emendou Deus o sereis do demônio com outro sereis, dizendo: Sancti eritis, quia Ego sanctus sum (2). O demônio disse: Sereis como Deus, sendo sábios; e Deus disse: Sereis como Deus, sendo santos. E vai tanto de um sereis a outro sereis, que o sereis do demônio não só nos tirou o ser como Deus, mas tirou-nos também o ser, porque nos tirou o ser santos, e o sereis de Deus, exortando-nos a ser santos, como ele é, não só nos restitui o ser como Deus, senão também o ser. Quando Moisés perguntou a Deus o que era, respondeu Deus definindo-se: Ego sum qui sum (Êx. 3,14): Eu sou o que sou — porque só Deus tem por essência o ser. Agora diz a todos os homens por boca do mesmo Moisés: Se sois tão amigos e tão ambiciosos de ser, sede santos, e sereis, porque tudo o que não é ser santo, é não ser. Sede rei, sede imperador, sede papa: se não sois santo, não sois nada. Pelo contrário, ainda que sejais a mais vil e mais desprezada criatura do mundo, se sois santo, sois tudo o que pode chegar a ser o maior e mais bem afortunado homem, porque sois como aquele que só é e só tem ser, que é Deus. Todo o outro ser, por maior que pareça, não é, porque vem a parar em não ser. Só o ser santo é o verdadeiro ser, porque é o que só é, e o que há de permanecer por toda a eternidade.

Bastava esta só razão para os homens, que temos alma imortal, desejarmos a santidade sobre todas as coisas, e desprezarmos todas as coisas só por ser santos. Mas quero que os mesmos santos e todos os santos nos ensinem e animem a esta verdade. Todos os santos quantos há e pode haver, pela mesma ordem em que hoje os celebra a Igreja, se reduzem a quatro classes. Deus, que também se preza de ser e de se chamar santo; a Mãe de Deus, que é a mais santa entre todas as puras criaturas; os santos anjos, repartidos em nove coros; os homens santos, divididos em seis hierarquias. Ora, vejamos como todos estes santos nos ensinam a estimar sobre tudo o ser santos, e comecemos por Deus.

Se perguntarmos aos teólogos qual é o maior atributo de Deus, responder-nos-ão que todos são iguais, porque todos e cada um deles é Deus. Mas se perguntarmos qual é o que mais declara e engrandece o ser do mesmo Deus, S. Dionísio Areopagita, que é o que mais altamente escreveu dos atributos divinos, diz que o ser santo: Deus per excellentiam cuncta excellentem Sanctus Sanctorum praedicatur. Quando dizemos que Deus é santo, e Santo dos Santos, louvamos em Deus uma excelência que é mais excelente que todas: Excellentiam cuncta excellentem. O grande doutor da Igreja, Santo Ambrósio, ainda disse mais, ou com maior expressão: Nihil pretiosius invenimus, quo Deus praedicare possimus, nisi ut sanctum apellemus: quodlibet aliud inferius est Deo, inferius est Domino: Quando queremos louvar e engrandecer a Deus, nenhuma coisa achamos de maior estimação e de maior preço que chamar-lhe santo, porque tudo o demais que dissermos é inferior a Deus, e só quando lhe chamamos santo dizemos o que é. Antigamente, como Deus era só conhecido em Judéia, no resto do mundo havia muitos chamados deuses, os quais todos tinham sacrifícios e sacerdotes. E que fez o verdadeiro Deus para se distinguir dos deuses falsos? Mandou que o seu Sumo Sacerdote trouxesse na testa uma lâmina de ouro com esta letra: Sanctum Domino (Êx. 28,36): A santidade ao Senhor — porque só aquele Senhor, que tem por atributo o ser santo, é o verdadeiro Deus.

Mais fizeram os profetas, os quais, falando de Deus, deixavam o nome de Deus, e o trocavam pelo nome de Santo. Lede Isaías e os demais, e achareis: Ad Sanctum Israel respicient: Blasphemaverunt Sanctum Israel: In Sancto Israel laetaberis: Venia consilium Sancti Israel (3), e assim em muitos outros lugares, não havendo panegírico, invectiva ou declamação em que não tragam sempre na boca o Santo de Israel, o Santo de Israel. E que Santo de Israel é este? É Abraão, Isaac, ou Jacó? É Moisés, Josué, ou Davi? É Elias ou Eliseu? Não. O Santo de Israel, de que falam os profetas, é Deus. Pois, se é Deus, por que lhe não chamam Deus, ou o Deus de Israel, senão o Santo de Israel? Porque em Israel havia naquele tempo muitos idólatras, que veneravam e sacrificavam aos deuses falsos da gentilidade; e para distinguir o Deus verdadeiro dos deuses falsos, não acharam os profetas outra diferença mais individual, nem outra distinção mais adequada, que chamar-lhe o Santo. Se lhe chamaram Deus, equivocava-se o nome de Deus com o dos ídolos, a quem os idólatras também chamavam deuses; mas chamando-lhe o Santo, tiravam toda a equivocação e toda a dúvida, porque só o atributo da santidade era o que distinguia e provava no Deus de Israel a única e verdadeira divindade. Tanto significa, tanto monta, e tão alta e divina coisa é, ainda no mesmo Deus, o ser santo.

Mas, se os profetas queriam distinguir o Deus verdadeiro dos falsos, por que não fundavam a distinção na verdade, senão na santidade? Por que não diziam o verdadeiro de Israel, senão o Santo de Israel? Porque, ainda que o verdadeiro se opõe formalmente ao falso, mais se qualifica o ser divino pelo atributo de santo que pelo de verdadeiro. Ouvi uma das maiores ponderações com que se pode avaliar e conhecer quão sublime e divina coisa é, ainda na estimação e veneração do mesmo Deus, o ser santo. Jurou Deus a Davi que seria o seu reino eterno, porque dele descenderia o Messias; e como fez Deus este juramento, ou por quem jurou? Coisa estupenda! Semel juravi in sancto meo, si David mentiar: semen ejus in aeternum manebit (SI. 88, 36): Jurei a Davi, pelo meu Santo, que não hei de faltar à verdade do que lhe prometi, e que há de ser pai do Messias. — In Sancto meo, pelo meu Santo! E que santo é este, pelo qual Deus jura? Já sabeis que juramento se faz sempre por aquilo que mais se venera ou mais se estima. Fora de nós, juramos pela vida de el-rei, pela cruz, por Cristo, por Deus, porque é o que mais veneramos, dentro em nós, juramos por nossa vida, por nossa alma, porque é o que mais estimamos. Da mesma maneira, não tendo Deus fora de si por quem jurar, jura pelo que tem dentro em si, e jura por si mesmo, enquanto santo, porque o ser santo é o que mais estima, o que mais preza, e, se se pode dizer assim, o que mais venera. Parece que havia Deus de jurar pela sua verdade, e jura pela sua santidade, como se ficara mais estabelecida a verdade do seu juramento na firmeza da sua santidade que da sua mesma verdade. Em Deus tudo é igual, e tão verdadeiro é como santo, e tão santo como verdadeiro; mas buscando Deus dentro de si mesmo um atributo que, ou fosse ou parecesse mais soberano e mais digno de veneração, pelo qual pudesse jurar, jurou Deus verdadeiro por Deus Santo: Semel juravi in Sancto meo.

(2) Vós sereis santos, porque eu sou santo (Lev. 11, 45).

(3) Olharão para o Santo de Israel (Is. 17,7).
— Blasfemaram o Santo de Israel (Is. 1,4).
— Alegrar-te-ás no Santo de Israel (Is. 41,16).
— Chegue-se o conselho do Santo de Israel (Is. 5,19).


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