VII
Os santos doutores, esquadrão também laureado, não fizeram ou não se desfizeram menos por ser santos. Foram a luz do mundo e o sal da terra, e assim como a tocha se consome para alumiar, e o sal se derrete para conservar, assim eles, para alumiar as cegueiras do mundo, e conservar a fé e religião em sua pureza, não só se pode dizer com verdade que consumiram a vida, mas que derreteram e estilaram a alma. Todos esses livros, tantos e tão admiráveis de S. Basílio, de S. Crisóstomo, de Santo Atanásio, de Santo Ambrósio, de S. Jerônimo, de Santo Agostinho e dos dois Gregórios, quatro doutores da Igreja grega e quatro da latina, e os dois que depois se acrescentaram a este sagrado número, Santo Tomás e S. Boaventura, os livros igualmente doutíssimos dos santos bispos, Hilário, Cipriano, Fulgêncio, Epifânio, Isidoro, e um e outro Cirilo, e os dos antiquíssimos padres Clemente Romano, Dionísio Areopagita, Erineu, Justino, Gregório Taumaturgo, Clemente Alexandrino, Lactâncio, e infinitos outros, todos estes escritos, digo, cheios de divina e celestial doutrina, que outra coisa são, sem encarecimento nem metáfora, senão as almas dos mesmos santos, e as quinta-essências dos seus entendimentos estiladas pela pena?
Ali se vêem refutadas e convencidas todas as seitas dos antigos filósofos pitagóricos, platônicos, cínicos, peripatéticos, epicureus, estóicos; ali os mistérios profundíssimos da fé facilitados e críveis, e os argumentos contrários desvanecidos; ali as tradições apostólicas sucessivamente continuadas, e as definições dos concílios gerais e particulares estabelecidas; ali as dificuldades da Sagrada Escritura e os lugares escuros dela declarados, e o Velho e Novo Testamento, e os Evangelhos entre si concordes; ali as questões altíssimas da Teologia sutilissimamente disputadas e resolutas, as controvérsias debatidas e examinadas, e o certo como certo, o falso como falso, e o provável como provável, tudo decidido; ali as heresias antigas e modernas expugnadas, e as cavilações dos hereges desfeitas, e os textos sagrados, corruptos e adulterados por eles, conservados em sua original pureza; os Ários, os Apolinares, os Macedônios, os Nestórios, os Donatos, os Pelágios, os Maniqueus, os Eutíquios, os Elvídios, os Jovinianos, os Vigilâncios, e os Luteros e Calvinos, que em nossos tempos os ressuscitaram, sepultados outra vez e convencidos; ali, finalmente, os vícios perseguidos, os abusos emendados, as virtudes sinceras e sólidas louvadas, as falsas e aparentes confundidas, e toda a perfeição evangélica digesta, praticada e posta em seu ponto.
E para tudo isto — que muitos não entendem, nem capacitam — que compreensão e vastidão de todas as ciências divinas e humanas era necessária; que memória de todas as histórias sagradas e profanas; que escrutínio da cronologia de todos os tempos; que notícias de todas as terras e gentes, de suas leis, costumes, cerimônias, ritos; que inteligência e conhecimento exato de todas as línguas, latina, grega, hebréia, caldaica, siríaca, umas originais dos textos sagrados, outras em que foram vertidos! E que estudo, que aplicação, que continuação e trabalho era outrossim necessário para adquirir esta imensa erudição, ajudado o engenho natural e elevado de contínuas orações ao céu, donde vem a verdadeira luz! Estas eram as minas em que cavavam e suavam aqueles diligentíssimos e utilíssimos operários, estas as riquezas inestimáveis que metiam e acumulavam nos tesouros da Igreja, estas as armas finíssimas e escudos impenetráveis de que forneciam a Torre de Davi para as futuras ocasiões e batalhas, como hoje se experimenta, empregando e aplicando a estas — que com razão se chamam obras -todas as forças do espírito, todas as potências da alma, e todos os sentidos do corpo, negando-lhe o descanso de dia, e o repouso e sono de noite, e chegando a não gostar nem sentir o mesmo que comiam, como à mesa de el-rei S. Luís de França lhe aconteceu a Santo Tomás. Mas, como eram tão doutos e sábios, sabiam melhor que todos quão grande coisa é ser santos, e por isso o procuravam eles ser com esta vida, e que os demais o fossem com esta mesma doutrina.
Por outro caminho bem diverso conquistaram o ser santos os anacoretas, deixando o trato e comunicação das gentes, e indo-se viver aos desertos; mas também lá lhes não faltaram batalhas, porque se levavam a si consigo, nem vitórias, porque os levava Deus. Estas eram as plantas do céu, de que estavam cultivados os ermos da Palestina, da Tebaida, do Egito, e aqui viviam como anjos, porque souberam fugir dos homens, os Paulos, os Hilariões, os Arsênios, os Onofres, os Pacômios, os Macários. Em muitos anos, e alguns em toda a vida, não se viam; eram porém muito para ver aquelas veneráveis cás nunca tocadas de ferro, como nazareus da lei da graça, da qual de noventa, qual de cento, qual de cento e vinte anos, estendendo o jejum e a abstinência as vidas, que tanto desbarata e abrevia o regalo. Habitavam as grutas e covas, das quais, quando saíam, mais pareciam cadáveres que homens vivos. Das mãos de S. Pedro de Alcântara escreve Santa Teresa que eram como feitas de raízes, e o mesmo podemos dizer das estátuas ou semelhanças destes santos velhos, secos, pálidos, mirrados, e como feitos ou tecidos das raízes das mesmas ervas de que se sustentavam.
Mas como na carne enfraquecida e debilitada com as penitências se criam e crescem os mais robustos espíritos, invejosos os do inferno de tanta santidade, se armavam fortemente contra eles, e, fazendo daqueles desertos campanha, lhes davam crudelíssimos combates. Umas vezes lhes apareciam os demônios transfigurados em áspides, basiliscos, dragões, e outros monstros horrendos que os queriam tragar, como ao grande Antônio; outras os assombravam com tremores espantosos da terra, relâmpagos, trovões e raios, com que parecia que as mesmas grutas se partiam, e caíam sobre eles os montes; e talvez na maior serenidade e frescura do ar, lhes traziam e punham diante dos olhos as mesmas figuras humanas de que tinham fugido, mais capazes pelo gesto e pelos trajos de provocar amor que medo; e estes eram entre todos os mais apertados e furiosos assaltos. Mas, que faziam aqueles constantíssimos atletas da castidade, quando os cilícios, de que sempre andavam armados, lhes não bastavam? Ou se valiam dos lagos e rios enregelados, como S. Francisco, ou nas silvas e espinhos, como São Bento, ou no fogo, metendo nele a mão e deixando derreter os dedos, como S. Diogo, e desta sorte, com a memória do mesmo inferno que lhes fazia a guerra, o venciam e triunfavam dele. Assim venciam, porque eram assistidos da graça de Deus, e assistia-os Deus tão eficazmente com sua graça, porque eles continuamente assistiam também a Deus, orando e contemplando.
De alguns se escreve que de noite mediam as horas da oração com um novo e admirável relógio do sol, porque começavam a orar quando se punha, e acabavam quando nascia. Mais fazia Simeão Estilita, a quem com razão podemos chamar Anacoreta do Ar, e não da terra. Vivia sobre uma coluna de trinta e cinco côvados de alto, onde perseverou oitenta anos ao sol, ao frio, à neve, aos ventos, comendo uma só vez na semana, e orando de dia e de noite, quase sem dormir. Umas vezes orava de joelhos e prostrado, outras em pé e com os braços abertos, e nesta postura estava reverenciando continuamente a Deus com tão profundas inclinações, que dobrava a cabeça até os artelhos. Teodoreto, testemunha de vista, quis saber o número a estas inclinações, e tendo contado mil duzentas e quarenta e quatro, cansado de contar, não foi por diante. Oh! assombro! Oh! prodígio! Oh! exemplo singularíssimo do que pode a fraqueza do nosso barro fortalecida da graça! Um tal gênero de vida, mais foi admirável que imitável. Mas o que mais admira, é que lhe não faltaram imitadores. Estilita quer dizer o habitador da coluna, e houve outro estilita, também Simeão, e outro estilita, Daniel, e outros. Tanto preço tem, nos que o sabem avaliar, o ser santo.
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