XI
Temos visto como em todos os estados, em todos os ofícios e em todas as fortunas podemos alcançar a maior fortuna de todas, que é ser santos; temos visto que o instrumento necessário para ser santos é só e unicamente o coração, contanto que seja puro e limpo; só resta para complemento da facilidade com que vos prometi que todos podemos ser santos, declarar quão facilmente podem todos conseguir esta mesma limpeza. A limpeza do coração consiste em estar limpo de pecados, e não há nenhum pecador, por grande que seja, que não possa conseguir esta limpeza de coração tão breve e tão facilmente que, se entrou nesta igreja pecador, não possa sair dela santo. Presentou-se a Cristo um leproso, e pondo-se de joelhos: genu flexo, disse assim: Domine, si vis, potes me mundare (Mt. 8,2 s): Senhor, se quereis, bem me podeis alimpar desta lepra. — Respondeu o Senhor: Vo lo, mundare: Quero, sê limpo — e no mesmo ponto ficou limpo daquele tão feio e tão asqueroso mal: Et confestim mundata est lepra ejus. Pode haver maior brevidade, pode haver maior facilidade de conseguir a limpeza? Parece que não. Pois eu vos digo, e é de fé, que muito mais breve e muito mais facilmente podeis conseguir a limpeza de coração se o mesmo coração quiser. A lepra do coração, mais feia, mais imunda e mais asquerosa que a do corpo é o pecado. E para que vejais quanto mais fácil e mais brevemente se consegue a limpeza desta lepra, ponhamos o mesmo leproso que Cristo curou, à vista de um coração também leproso pelo pecado, e veremos qual consegue a limpeza com maior facilidade.
Estava leproso o coração de Davi, não outro, senão aquele coração de quem ele disse com os mesmos termos do nosso texto: Cor mundum crea in me, Deus (12). E estava tão penetrado da lepra, que havia já um ano que perseverava no pecado, quando o exortou o profeta Natã a que considerasse o estado miserável de sua consciência, e se convertesse de todo coração a Deus, de quem vivia tão esquecido. Fê-lo assim Davi, mas que fez? Somente disse: Peccavi (2 Rs. 12,13): Pequei, — e não tinha bem pronunciado esta palavra quando o profeta lhe disse que já estava perdoado e restituído à graça de Deus: Dominus quoque transtulit peccatum tuum (13). Comparai-me agora a Davi com o leproso, e vede qual conseguiu a limpeza da lepra mais fácil e mais brevemente. O leproso pôs-se de joelhos: genu flexo e Davi não se ajoelhou; o leproso disse cinco palavras: Si vis, potes me mundare, — Davi não disse mais que uma: Peccavi; e com tudo isto o leproso não tinha ainda conseguido a limpeza, antes estava duvidoso dela: Se vis; e Davi já tinha conseguido e estava certificado disso da parte do mesmo Deus: Dominus quoque transtulit peccatum tuum. Logo, muito mais fácil e muito mais brevemente conseguiu o coração de Davi a limpeza da sua lepra, do que o leproso a da sua. Mas quando o conseguiu o leproso? Quando Cristo lhe respondeu: Volo, mundare: Quero, sê limpo. — Agora vos peço eu que me respondais a mim, e eu vos prometo que com a vossa resposta ficarão limpos os vossos corações ainda mais brevemente que o leproso com a resposta de Cristo, porque a resposta de Cristo comunicou a limpeza ao leproso com duas palavras, e a vossa resposta há de comunicar a limpeza aos vossos corações só com uma sílaba. Respondei, pois, cristãos, ao que vos pergunto. Não vos pesa muito de ter ofendido a um Deus de infinita majestade e bondade, por ser ele quem é? Não vos pesa e vos arrependeis entranhavelmente de ter sido ingratos a um Deus que vos criou, e vos deu o ser, e vos remiu com seu sangue? Não detestais de todo coração todos vossos pecados, por serem ofensas suas? Não tendes nesta hora firmes propósitos de nunca mais o ofender? Sim? Pois este sim, dito de todo coração, basta para que o mesmo coração fique e esteja já limpo de todos seus pecados; e esse sim, sendo uma só sílaba, fez nos vossos corações o mesmo efeito, e mais maravilhoso ainda, que as palavras de Cristo no leproso.
Pois, se na limpeza do coração consiste o ser santos, e esta limpeza de coração se pode conseguir tão facilmente só com um movimento do mesmo coração, que coração haverá tão fraco, ou que homem de tão fraco e de tão pouco coração que não se resolva a ser santo? Se o ser santo fora uma coisa muito dificultosa, bem nos merecia o céu e a bem-aventurança que, pela gozar eternamente, se venceram todas as dificuldades. Mas é tão fácil que, sem vos bulir do lugar onde estais, e sem mover pé nem mão, nem fazer ou padecer coisa alguma, só com um ato do coração, e o ato mais natural, mais fácil e mais suave do mesmo coração, que é amar, e amar o sumo bem, podemos ser santos. Exorta Moisés a amar a Deus de todo coração, que é o mandamento em que se encerram todos, e conclui assim. Mandatum hoc non supra te est, neque procul positum (Dt. 30, 11): Este mandamento não é sobre nós, nem está longe de nós. — Se fora sobre nós e estivera lá no céu: In caelo situm (Ibid. 12), tê-lo-íamos por impossível; se estivera longe de nós, e com muito mar em meio: Trans mare positum (Ibid. 13), tê-lo-íamos por muito dificultoso. Mas é muito fácil e está muito perto, porque está o cumprimento dele dentro do nosso coração: Sed juxta te est sermo valde in corde tuo (14). Moisés, que não prometia o céu, disse que estava perto de nós o cumprimento deste preceito; mas Cristo, que promete o céu, ainda disse mais e melhor, porque diz que o preceito, e o céu, e o merecimento dele não só está perto de nós, senão dentro de nós: Regnum Dei intra vos est (15). Cuidamos que o céu, onde subiram os santos, está muito longe, e enganamo-nos: o céu não está longe, senão muito perto, e mais ainda que perto, porque está dentro de nós, e dentro do que está mais dentro, que é o coração. E que haja almas, e tantas almas, que tendo o céu dentro de si na vida, fiquem fora do céu na morte, e que podendo tão facilmente purificar o coração e ser santas, só porque não querem o não sejam? Se para amar a Deus e ganhar o céu houvéramos de atravessar os mares tormentosos e contrastar com todos os elementos, pouco era que se fizesse pela bem-aventurança certa do céu o que tantos fazem por tão pequenos interesses da terra; mas, tendo-nos Cristo tão facilitada a bem-aventurança, que entre a mesma bem-aventurança e o coração não haja mais que a condição de ser limpo: Beati mundo corde, e, podendo o mesmo coração alcançar essa limpeza em um instante de tempo e com um ato de amor, e de amor ao sumo bem, que não sejamos todos santos, e não queiramos ser bem-aventurados?
Notas:
(12) Cria em mim, ó Deus, um coração puro (Sl. 50,12)
(13) Também o Senhor transferiu o teu pecado (2 Rs. 12,13).
(14)Mas esta palavra está muito perto de ti, no teu coração (Deut. 30,14).
(15) O reino de Deus está dentro de vós (Lc. 17,21).Fonte: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT2803025.html
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