Capítulo VII - A túnica inconsútil de Cristo
1. Este sacramento da unidade, este vínculo de concórdia inviolada e sem rachadura, é figurado também pela túnica do Senhor Jesus Cristo. Como lemos no Evangelho, ela não foi dividida, nem, de modo algum, rasgada, mas sorteada. Isto quer dizer que quem toma a veste de Cristo e tem a dita de se revestir do próprio Cristo [Rom 13,14; Gál 3,27], deve receber a sua túnica toda inteira e possuí-la intacta e sem divisão.
2. Diz a divina Escritura: "Quanto à túnica, visto que, desde a parte superior, era feita de uma única tecedura, sem costura alguma, disseram: não a dividamos, mas lancemos-lhe a sorte para ver a quem toca" (Jo 19,23-24). A unidade da túnica derivava da sua parte superior - em nosso caso, do céu e do Pai celeste. Aquele que a recebia e guardava não podia rasgá-la de modo nenhum, de fato ela era resistente e sólida por ser constituída de um modo inseparável.
3. Não pode possuir a veste de Cristo aquele que rasga e divide a Igreja de Cristo.
4. O contrário aconteceu à morte de Salomão, quando o seu reino e o povo deviam ser divididos. O profeta Aías, indo ao encontro do rei Jeroboão no campo, cortou o seu manto em doze partes, dizendo: "Toma para ti dez partes, porque assim diz o Senhor: eis que eu divido o reino da mão de Salomão, a ti darei dez cetros e dois ficarão para ele, por causa do meu servo Davi e de Jerusalém, a cidade eleita em que eu pus o meu nome" (1Rs 11,30-36). Para separar as doze tribos de Israel, o profeta dividiu O seu manto.
5. Mas o povo de Cristo não pode ser dividido, e por isso a sua túnica, que era um todo feito de uma só tecedura, não foi dividida por aqueles que a deviam possuir. Ficando uma só, bem firme na sua contextura, ela mostra a união e a concórdia do nosso povo, isto é, daqueles que são revestidos de Cristo. Por este sinal sagrado da sua veste, proclamou ele a unidade da Igreja.
Capítulo VIII - Figuras do Antigo Testamento: Raabe, o cordeiro pascal
1. Portanto quem será tão celerado e pérfido, tão louco pelo furor da discórdia, para pensar como possível ou até para ousar romper a unidade de Deus, a veste do Senhor, a Igreja de Cristo?
2. Ainda uma vez nos avisa ele no Evangelho dizendo: "E haverá um só rebanho e um só pastor" (Jo 10,16). E como se pode pensar que, num mesmo lugar, existam muitos pastores e muitos rebanhos?
3. O apóstolo Paulo, por sua vez, inculcando esta mesma unidade, suplica e exorta: "Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que todos digais as mesmas coisas e não se dêem cismas entre vós. Sede unidos no mesmo sentimento e no mesmo pensamento" (1Cor 1,10) E de novo: "Sustentando-vos mutuamente no amor, esforçando-vos por conservar a unidade do Espírito na união da paz" (Ef 4,2-3).
4. Achas tu que alguém pode afastar-se da Igreja, fundar, a seu arbítrio, outras sedes e moradias diversas e ainda perseverar na vida? Ouve o que foi dito a Raabe, na qual era prefigurada a Igreja: "Recolhe teu pai, tua mãe, teus irmãos e toda a tua família junto de ti, na tua casa, e qualquer um que ouse sair fora da porta da tua casa, será ele próprio culpado da sua perda" (Jos 2,18-19).
5. Igualmente o sacramento da Páscoa [antiga], como lemos no Êxodo, exigia que o cordeiro, morto como figura de Cristo, fosse comido numa só casa. Eis as palavras de Deus: "Seja comido numa só casa, não jogueis fora da casa carne alguma dele" (Ex 12,46). A carne de Cristo, o Santo do Senhor [Nota: "Sanctum Domini" O Santo do Senhor - era como os primeiros cristãos chamavam a Eucaristia - O Corpo e Sangue de Cristo Jesus], não pode ser jogado fora. Para os que nele crêem, não há outra casa a não ser a única Igreja.
6. O Espírito Santo anuncia e significa esta casa, esta morada da união dos corações, dizendo nos salmos: "Deus faz habitar na casa aqueles que são unânimes" (Sl 67,7). Na casa de Deus, na Igreja de Cristo, os moradores são unidos e perseveram na concórdia e na simplicidade.
Capítulo IX - A pomba, exemplo de sociabilidade e concórdia
1. Por isto também o Espírito Santo desceu em forma de pomba [Mt 3,16; Mc 1,10], animal simples e alegre, sem amargura alguma de fel, incapaz de se enfurecer; não morde, não arranha com as unhas. Prefere as moradias dos homens e gosta de habitar numa mesma casa. Quando criam, as pombas cuidam dos filhotes juntamente, quando viajam, voam pertinho umas das outras. Passam o tempo em tranqüilos arrulhos, manifestam a concórdia e a paz beijando-se no rosto. Enfim, em todas as coisas seguem a lei da boa harmonia.
2. Esta é a simplicidade que deve reinar na Igreja, essa a caridade que devemos realizar: o amor fraternal imite as pombas, a mansidão e a brandura sejam iguais às dos cordeiros e das ovelhas.
3. Como podem estar no coração de um cristão a ferocidade dos lobos, a raiva dos cães, o veneno mortífero das serpentes ou a crueldade sanguinária das feras?
4. Devemos alegrar-nos quando os que têm esses sentimentos se separam da Igreja. Assim as pombas e as ovelhas de Cristo não serão contagiadas pela sua maldade e pelo seu veneno. Não podem conciliar-se e juntar-se amargura e doçura, trevas e luz, chuva e céu sereno, guerra e paz, esterilidade e fecundidade, secura e manancial, tempestade e bonança.
5. Não acreditem que os bons possam deixar a Igreja: não é o trigo que o vento carrega, o furacão não arranca as árvores que têm sólidas raízes. Ao contrário são as palhas vazias que a tormenta agita, são as árvores vacilantes que a força dos turbilhões abate. Contra esses o apóstolo S. João manifesta a sua repulsa, dizendo: "Saíram do nosso meio, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, sem dúvida teriam ficado conosco" (1Jo 2,19).
Capítulo X - Origem e maldade das heresias
1. A origem de onde nasceram freqüentemente e continuam nascendo as heresias é a seguinte: há mentes perversas e sem paz, que, discordando em sua perfídia, não podem suportar a unidade. O Senhor, por seu lado, respeita a liberdade do arbítrio humano, permite e tolera que isto aconteça, a fim de que o crisol da verdade purifique os nossos corações e as nossas mentes, e, na provação, resplandeça com luz inequívoca a integridade da fé.
2. O Espírito Santo nos previne, por meio do Apóstolo: "Convém que haja heresias para que entre vós se tornem manifestos os que resistem à prova" (1Cor 11,19). Assim, aqui mesmo, antes do dia do juízo, são divididas as almas dos justos e dos perversos e as palhas são separadas do trigo.
3. Esses são os que, por própria iniciativa e sem chamamento divino, se põem a encabeçar temerários grupinhos. Contra toda a lei da ordenação, se constituem superiores e, sem que ninguém lhes dê o episcopado, se atribuem a si mesmos o nome de bispos. A eles faz alusão o Espírito Santo, no Salmo, falando dos que estão sentados em cátedras de pestilência, porque são peste infecciosa da fé. Mestres na arte de corromper a verdade, eles enganam com bocas de serpente, vomitando de suas línguas pestilentas peçonhas mortíferas. Os seus discursos brotam como chaga cancerosa, o trato com eles deixa no fundo de cada coração um veneno mortal.
Capítulo XI - O Batismo cismático
1. Contra esses homens brada o Senhor, para afastar ou retirar deles o seu povo desviado: "Não escuteis os sermões dos pseudoprofetas, porque vivem iludidos pelas alucinações do seu coração. Falam, mas não as palavras do Senhor. Aos que rejeitam a palavra de Deus dizem eles: tereis a paz, vós e todos os que andam segundo as próprias vontades. Não virá mal algum, ainda sobre aqueles que seguem os erros do próprio coração. Eu não lhes falei e eles vão profetando. Se tivessem atendido ao meu conselho, ouvido as minhas palavras e as tivessem ensinado ao meu povo, eu os teria convertido dos seus perversos pensamentos" (Jer 23,16-22).
2. E de novo fala deles o Senhor: "Abandonaram a mim, que sou a fonte da água viva, e escavaram para si covas escuras, que nem podem dar água" (Jer 2,13 [Nota: Tradução literal do texto latino antigo. As versões tiradas do hebraico dizem: "cisternas fendidas, que não retêm a água"]).
3. Enquanto não pode haver senão um Batismo, eles pensam que podem batizar. Abandonaram a fonte da vida e ainda prometem a graça da água que dá a vida e a salvação. Lá os homens não são purificados, mas, ao contrário, mais poluídos. Lá os pecados não são perdoados, mas, antes, aumentados. Aquele nascimento não gera filhos para Deus, mas para o demônio [Nota: Esta recusa do batismo dos hereges é conseqüência do pensamento vigente. Este pensamento afirmava que qualquer violação na unidade da Igreja significava perversão total da fé. Hoje, a Igreja aceita o batismo das denominações protestantes tradicionais.
4. Os que pretendem nascer por meio da mentira não recebem absolutamente as promessas da verdade. Gerados pela perfídia, não alcançam a graça da fé. Aqueles que, no delírio da discórdia, quebraram a paz do Senhor, não podem chegar ao prêmio da paz.
(continua)
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