Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade. (II Coríntios 13,8)

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Tsunami: se Deus existe e é bom, então como entender a fúria da natureza e a predestinação ao mal?


Revista Aquinate


Em razão da catástrofe ocorrida em 26 de Dezembro de 2004, o Tsunami que devastou principalmente o Siri Lanka, muitas matérias jornalísticas e inclusive religiosos abordaram o tema de se Deus pode causar o mal. Mas subjacente a este tema havia uma outra questão: Deus predestina alguém ao bem ou ao mal?
Relendo estas reportagens me ocorreu aproveitar e redigir esta reflexão sobre este acontecimento, a partir de uma visão filosófica tomista. Trata-se pois de uma questão teológica a que me aventuro responder enquanto mero conhecedor de poucas idéias filosóficas, cujo motivo maior para responder está mais na fé que nos conhecimentos que disponho. Se em última instância já não for mais o argumento certo que nos fizer ver com clareza o constitutivo do tema, não haverá dúvida de que o que nos falta é a fé. Portanto, me ponho a analisar a questão que surgiu como tema de fundo nas matérias jornalísticas acerca do Tsunami e a ação de Deus: Deus predestina algo ou alguém ao mal?
Minha intenção - longe de dar efetiva resposta à questão proposta – é a de promover pela via da razão – até onde a razão pode alcançar, um esclarecimento amadurecido a partir de uma reflexão filosófico- teológica pautada nas Escrituras, acerca do tema proposto. À questão que inicia a nossa análise é: Se Deus é onisciente e sabe que alguns não se salvarão, porque continua criando aqueles que Ele conhecia e sabia antes de criar que não se salvariam?
Procurarei tratá-la progressivamente, segundo o pensamento de Tomás de Aquino. A dificuldade de compreender a questão reside no fato de que é necessário esclarecer alguns princípios que são subjacentes à própria pergunta e que podem ter sido considerados equivocadamente: Deus não predestina ao mal; o homem é livre para escolher o mal que não quer e elege ou o bem que quer e não o elege; Deus providencia assim mesmo, graças para os que não elegem o bem que querem, mas o mal que não querem, mas para que sejam eficazes na liberdade é necessário antes se abrir e converter-se a Deus. Prolegômenos Para explicar a predestinação do homem ao mal por parte de Deus alguém poderia perguntar: Em Deus há o mal? Como introdução geral podemos começar dizendo que Deus é sumo amor e bem. Não há n'Ele mal, Ele não predestina ninguém ao mal, pois quer a todos no seu amor. Disso decorre que não há o mal em Deus. Mas, se n'Ele efetivamente não há o mal, não podemos dizer o mesmo do mundo. Então alguém poderia perguntar: não há o mal no mundo? E a resposta seria sim. É um fato a constatação do mal no mundo, a dor e o sofrimento do homem evidenciam isso. A natureza toda geme e sofre, haja vista a catástrofe do Tsunami. Em tudo há a privação do bem.
Sendo um fato a existência do mal no mundo, alguém poderia invariavelmente perguntar: se Deus é o criador do mundo não é ele quem causa o mal no mundo? Para quem pergunta pareceria haver um dilema que se pauta na seguinte questão: ora, se é Deus o criador do mundo, não seria ele mesmo a causa do mal que há na criação? Pelo exposto logo no início poderia responder que se Deus é sumo bem, Ele não poderia senão causar somente o bem. Logo, deveria haver outra explicação para entender o que é objeto de questionamento. Portanto, Deus é sumo bem e a sua obra de criação é boa. Se há o mal no mundo este não proveio de Deus que o criou. Daí que pela evidência da existência do mal no mundo ninguém poderia induzir que o seu criador é mal. Do contrário, todo defeito ou privação que existir numa produção deveria ser aplicado a quem a produz, o que não é verdadeiro. Por ser cego quem é retratado numa bela pintura não se segue daí que provavelmente trata-se de um auto-retrato ou que o pintor fosse cego também.
Pautado no anterior – de que o mal não procede de Deus e de que existe no mundo – alguém poderia ser levado a pensar que o mal é um co-princípio ao lado de Deus: Deus seria o princípio do bem e o mal o outro, como pensavam os Maniqueístas. Algumas correntes filosóficas inspiradas no neoplatonismo, como os maniqueístas pensavam desta maneira. Inclusive alguns teólogos judeus, na Idade Média, como Avicebrão, acreditava haver um princípio espiritual bom que é Deus e um mal que seria a matéria encontrada no mundo físico.
Deste modo alguém perguntaria: o mal existe no mundo como um princípio oposto ao de Deus? Responder-se-ia dizendo que o mal não é um ser, mas existe ou está num ser, ali onde não se encontra alguma perfeição ou bem realizado que deveria ser encontrado e realizado. A cegueira, por exemplo, é um mal físico e está nos olhos de um ser que embora seja bom, se encontra privado de uma perfeição, a visão, justamente ali onde deveria realizar-se este bem. O vício, por exemplo, é um mal moral e está no comportamento de um sujeito que embora seja bom pela natureza, se encontra privado da virtude, justamente ali onde deveria realizar-se um bem devido na natureza: a virtude.
Disso se segue que o mal não existe pelo seu próprio ser, essência ou natureza, senão que existe como privação de perfeição no ser, na essência e na natureza de um sujeito que é um bem, mas que pela carência de alguma perfeição ou bem devido nalguma parte daquele ser, essência ou natureza, diz-se haver nele mal. Somente o bem existe por ser, essência e natureza. Como privação que é, o mal existe no sujeito que é um bem, e existe onde neste sujeito há a não realização ou privação de alguma perfeição. Disso se segue que da essência sumamente boa de Deus nenhum mal procede e de que todo mal que possa haver, este existe como privação de alguma perfeição num ser que é por si mesmo um bem.
Portanto o mal é privação do bem no ser. Onde não se realiza o bem, surge o mal como privação do bem. O mal não tem essência, pois é antes um acidente do que não se realiza numa ação ou num ser como bem. Por isso os antigos diziam que o bem é de causa íntegra e o mal qualquer defeito. Pois bem, se não é Deus quem causou o mal no mundo e se o mal não tem ser, essência e natureza próprias, alguém ainda perguntaria: como então entrou o mal no mundo? A resposta seria: pela não aceitação ou negação do bem que é Deus e que por causa disso gerou-se justamente a privação do bem, cujo nome temos dito ser o de mal. Mas retornemos à questão anterior.
Ainda não satisfeito alguém poderia perguntar: por que Deus permitiu que o mal entrasse no mundo? Ninguém é predestinado ao mal. Mas, predestinado ao bem não significa predeterminado ao bem. Há no homem a liberdade, faculdade e ato da natureza do homem que lhe capacita autonomia na ação, portanto, que lhe capacita eleger, julgar o que lhe pareça melhor, ainda que possa errar elegendo o que lhe pareça melhor, sem saber e sem que o que é eleito seja efetivamente um bem para si. Portanto, se ninguém é predestinado ao mal, todos são chamados à santidade.
Ser chamado ou convidado para uma festa não me obriga a ter que ir. Por isso, embora sejamos predestinados ao bem e vocacionados à santidade, somos livres para eleger e julgar, segundo nosso conhecimento, se devemos escutar ou não o chamado. Bem, alguém ainda poderia perguntar, pautado no anterior, dizendo que se o que a que Deus nos chama é tão bom para nós, porque nos deu a capacidade de não elegê-lo? Efetivamente esta capacidade nos foi dada primeiramente porque Deus quis que as criaturas que mais amou ao criar Lhe estivessem maximamente próximas em perfeição pela semelhança na liberdade. Em segundo lugar, e disso trataremos mais abaixo que, quando se ama na verdade e no bem, como Deus nos ama, nos ama livremente; e seria contrária a esta própria capacidade de autonomia – a que Deus nos fez partícipes livremente – se por uso dela Deus nos obrigasse a amá-Lo. Deus não nos obriga a amá-Lo, mas nos revela, ensinando e advertindo, que não há maior amor que a nossa liberdade pudesse perfeitamente eleger que não fosse o que Ele nos oferece.
Contudo, como decorrência da queda original – cuja queda constituiu-se no afastamento dos bens espirituais que Deus nos dá e por cuja perda nos dificultou o conhecimento do bem e da verdade – podemos julgar e eleger equivocadamente algo, como efeito da queda e da ignorância que isso produziu em nós. A ignorância neste caso é desconhecer o que se deveria conhecer para poder eleger e julgar bem uma ação ou alguma coisa.
Não obstante, ao se nos revelar Deus nos permitiu conhecer os seus desígnios de restauração de sua obra amada caída: o homem. Deste momento em diante, sabendo o que se deve fazer para converter-se, aplica-lhe responsabilidade pelas ações. Portanto, a queda não tirou ou eliminou a responsabilidade humana, já que Deus revela ao homem os seus desígnios. Há, portanto, responsabilidade se alguém usa mal a eleição e o julgamento pela liberdade na escolha de uma ação, se conhece os desígnios de Deus. Com a queda o homem não perdeu o que lhe fora dado essencialmente por Deus, por natureza, formando a natureza do homem. Sua razão, vontade e liberdade continuaram. A queda o fez perder aquilo que sobrenaturalmente agia na natureza na promoção de sua progressiva conversão a Deus e que Deus o havia dado por amor: a graça.
O livre-arbítrio usado na ignorância dos desígnios de Deus e no fechamento à graça, causa dor e sofrimento ao homem. Alguém poderia então perguntar: porque aparentemente não sofrem os que mesmo conhecendo os desígnios de Deus, não o seguem, quando no uso da liberdade elegem algo mal e o usufruem como se fosse algo bom? O prazer instantâneo de uma má eleição oferece a quem a exerce a sensação de poder e autodomínio, que são próprios não da sensação que promove o prazer, mas da liberdade mesma, pois a liberdade mesmo quando mal usada, com ignorância, não deixa de promover em quem a exerce, aquilo que lhe é próprio e que constitui um bem, isto é, a sensação de poder e autodomínio sobre a ação, pois é isso inerente a qualquer ação livre, já que se não fosse assim, somente sentiriam isso quem agisse livremente para o bem e não para o mal; mas vemos que o atributo bom da liberdade privilegia, no que lhe é natural, inclusive a quem a utiliza mal; isto prova que a liberdade é um bem em si mesmo, e o mal está em seu mau uso.
Não convém exercer a liberdade na ignorância e na dúvida da matéria a que se aplicará o livre arbítrio, pois se o homem possui a razão como instrumento para alcançar o remédio devido para estas enfermidades seria incauto fundamentar a liberdade em qualquer elemento inferior à razão, como nos sentidos ou nos instintos. O mau uso da liberdade fundamentando-a no que os sentidos, as paixões e os instintos a determinam, acaba por aprisionar a liberdade ao objeto a que tais paixões, sentidos e instintos tendem. Neste caso, o que deveria ser autônoma diante inclusive do que mais possa desejar, a liberdade acaba por torna-se prisioneira do que inclusive possa não desejar. Parece ter sido LÚCIDO DE RIEZ [séc. V] quem introduziu a doutrina segundo a qual havia duas predestinações: uma para a bem-aventurança e outra para a condenação eterna. Se isso fosse assim se seguiriam dois problemas: ficam praticamente negadas a liberdade humana [mediante a qual é possível em qualquer instante do curso da vida humana abrir-se à graça e libertar-se do flagelo] e a Redenção de Cristo [pois não se estenderia aos não predestinados]. Não discutiremos a tese de Lúcido, mas o modo como podemos entender filosófica e teologicamente o erro de sua doutrina, baseando-nos nas Escrituras e no Pensamento de Tomás de Aquino. §1. DA EXISTÊNCIA DE DEUS. A proposição ‘Deus existe’ é evidente para Si mesmo e não para nós [S.Th. Iq2a1]. Se Deus não tivesse se revelado, o homem não o teria conhecido. Não obstante, a proposição ‘Deus existe’ pode também ser evidente para nós se tivermos em conta a própria Revelação – ato de amor – que se deu pela criação. A criação - que é também modo de Revelação de Deus – é obra e efeito da onipotência de Deus; e isso nos permite conhecer-Lhe pelos efeitos, no uso de nossas faculdades. Portanto, pela razão, mediante análise dos efeitos, pode-se inferir a necessidade de uma Causa Primeira: A existência de Deus. Por isso, é possível demonstrar a existência de Deus [S.Th. Iq2a2], pois como diz o Apóstolo na Carta aos Romanos: “As perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis à inteligência, por suas obras” [Rm 1,20]. A quem crê bastaria fixar-se em Ex 3,14 onde Deus revela a sua existência dizendo: ‘Eu sou Aquele que sou’. Mas Deus também se revela ao incrédulo quando não lhe omite a possibilidade de conhecê-lo, ainda que não Lhe creia. Nestes termos Deus se oferece à inteligência do crédulo e do incrédulo na possibilidade de conhecê-Lo, por suas obras. Disso pode decorrer ao menos tais possibilidades:
1) o crédulo bastar-se na revelação para afirmar que Deus existe; 2) o crédulo acreditar que Deus existe, mas procurar demonstrá-Lo no uso da razão; 3) o crédulo acreditar que Deus existe, mas ser impossível conhecê-Lo ou demonstrar-Lhe a existência [agnóstico]; 4) o incrédulo sem crer-Lhe, procurar conhecê-Lo e por fim O conhece. 5) o incrédulo sem crer-Lhe não procurar conhecê-Lo e disso vir a negar-Lhe o ser e a existência [ateu]. Note-se que o ateu não é aquele que nega meramente a existência de Deus por não ter como conhecê-La, mas é aquele que se rejeita a querer conhecê-lo. §2. DA PERFEIÇÃO DE DEUS. Nenhuma perfeição pode faltar a Deus. De tal maneira que Deus é perfeito [S.Th.Iq4a1]. Como perfeição de sua essência afirma-se a bondade: Deus é o sumo bem e todas as coisas são boas pela bondade divina [S.Th.Iq6a1-4]. A finitude e a mutabilidade são imperfeições, portanto a infinidade [S.Th.Iq7a1-4] e a imutabilidade [S.Th.Iq9a1-2] são perfeições divinas. Nestes termos não há o que possa medir o ser de Deus, senão Deus mesmo, pois como Ele não há o que não tenha tido nem início nem término no tempo, já que Ele é eterno [S.Th.Iq10a1-6].
Ora, se não há nada mais tão perfeito além de Deus, necessariamente Ele é uno e único [S.Th.Iq11a1-4]. Portanto, nada, nem ninguém conhece a Deus como Ele mesmo se conhece [S.Th.Iq14a2-4] e nada nem ninguém pode conhecer perfeitamente como Deus conhece todas as coisas que d'Ele são distintas [S.Th.Iq14a5-6]. Por isso Deus é onisciente, pois a tudo conhece. Deus assim sabe o que quer e pode o que sabe, pois ele é onipotente [S.Th.Iq25a1-6]. Daí haver em Deus perfeita vontade [S.Th.Iq19a1-5].
Por isso o Apóstolo diz na Carta aos Efésios 1,11 que Deus é “Aquele que faz segundo a deliberação de sua vontade”. Ora, o que fazemos por uma deliberação voluntária, não o queremos por necessidade. Logo, Deus não quer por necessidade aquilo o que quer. Portanto, há livre-arbítrio em Deus [S.Th.Iq19a3 e 10]. Mas porque é perfeita quando quer, Sua vontade se cumpre sempre [S.Th.Iq19a6] e é imutável. O mal é privação do bem, mas Deus é o sumo bem e não há privação nenhuma no seu querer, de tal modo que sua vontade é sempre do bem. Logo, Deus nunca quer o mal [S.Th.Iq19a9].
Como canta o livro da Sabedoria 11, 25, Deus ama tudo o que existe e nada detesta do que fez. Por isso sabiamente João revelará que Deus é amor [S.Th.Iq20a1-4]. Porque amor é doação, a Deus convém o atributo justo, pois por amor e sabedoria Deus dá a cada um de acordo com a sua dignidade. Por isso, a sua justiça é a verdade [S.Th.Iq21a3]. Deus que tudo sabe, conhece as deficiências das criaturas; mas não convém a Deus entristecer com a miséria das criaturas, mas lhe convém ao máximo, por seu amor, bondade e sabedoria, fazer cessar essa miséria. Daí que Deus é misericordioso [S.Th.Iq21a3].
Por isso, como se diz no livro da Sabedoria, 15,3 “És tu Pai que tudo governas por tua providência”, para que nada falte às criaturas Deus por amor e bondade provém de bens aos que dele carece [S.Th.Iq22a1-3]. Para que nada falte aos homens, segundo o que lhe convém prover, Deus com sua bondade e amor predestina bens aos homens para que supram as suas dificuldades. Portanto, a predestinação é ato de providência.
O homem é livre para aceitar ou não estes bens. Mas nem por isso Deus que é sumo amor e bem deixará de lhe prouver de bens necessários para que alcance a sua perfeição [S.Th.Iq23a1]. Aos que se abrem e aceitam estes bens Deus os ama ainda mais e os elege. Porém não deixa de amar aos que não se abrem e aceitam os seus bens, embora não seja Deus que não os eleja e os condene ou os predestine ao mal, mas antes são estes que não desejam a eleição divina e por se afastarem dela, afastam-se ainda mais do bem e do amor, condenando-se ao mal que é justamente a privação do amor e bem divinos.
Portanto não é Deus que predestina alguém ao mal, mas antes a ignorância e o orgulho humanos – que nascem do mau uso da liberdade e da privação do conhecimento de algum bem – que predetermina o homem a afastar-se de Deus e a anelar-se ao mal. Daí que por Deus ninguém é predestinado ao mal. E porque a tudo ama, a ninguém faltarão bens para alcançar a perfeição. E qual é a perfeição do homem? Conhecer a Deus. Mas é preciso esclarecer melhor o que são estes bens e como Deus ama a tudo o que cria e a ninguém condena, senão que alguém se condena a si mesmo por orgulho que é conseqüência da ignorância do amor divino e do fechar-se aos bens que Deus prouve ao homem – por misericórdia – para ajudá-lo a superar suas deficiências e alcançar a perfeição que consiste em conhecê-Lo. §3. DA VOCAÇÃO UNIVERSAL À SANTIDADE. Porque Deus ama a tudo o que criou e sobremaneira aos homens, criaturas que Deus quis por si mesmas, criando-as à sua imagem e semelhança e revestindo-as de nobreza e as dignificando-as em si mesmas, a todos igualmente chama à santidade [1Ts 4,3: “Esta é a Vontade de Deus: a vossa santificação”]. Que consiste a santidade? Consiste em conhecer a Deus. Ver a Deus face a face. A Bem-Aventurança.
Pois bem, se santidade é conhecer a Deus, a vocação à santidade é vocação à sabedoria, pois não há saber maior que os homens possam alcançar que saber Deus. Ser santo é pois buscar ser perfeito como Deus [Mt 5,48]. Por muito nos amar e por havermos perdido o elo original com Deus, Deus se encarnou para mostrar-nos e revelar-nos o modelo de santidade: seu Filho Jesus Cristo que se nos revela como caminho, verdade e vida.
Cristo é modelo e tudo o que ele fez, ensinou e ordenou deve ser observado como caminho de santidade. Deus por amor re-estabelece o elo com a encarnação, paixão e morte do seu filho: é preciso morrer no mundo e para o mundo enquanto se ama ao próximo, para viver em Deus e para Deus enquanto se ama a Deus. Nenhum homem está fora desta vocação à santidade e à sabedoria pela parte de Deus, a não ser por arbítrio equivocado da própria liberdade de cada homem. Na história da humanidade encontramos um contínuo exercício de amor por parte de Deus a fim de trazer-lhe o que lhe pertence: nós. O projeto de salvação é um projeto de resgate.
Vimos que por arbítrio equivocado [um arbítrio pode equivocar-se por ignorância, por orgulho, por paixão desenfreada pelo mundo e suas coisas, que obscurecem os olhos da razão e do coração diante da graça] da própria liberdade o homem pode preferir os seus desejos e ao mundo, do que a vontade de Deus e por isso não se abandonar na vontade de Deus. Mas, nem mesmo assim Deus o abandonará, pois sua vontade é imutável e faz parte de sua vontade revelar-se plenamente a cada um dos homens.
Deste modo, Deus mantém-se fielmente aberto ao retorno de cada homem e haverá muito mais alegria do retorno deste, que pelo arbítrio fechou-se às graças de Deus, do que pelo justo que se mantém fielmente aberto a elas. Deus continuará minando o curso da vida de cada homem que se fechou à sua graça, com abundantes oportunidades de retorno pela mesma graça.
Mas, diante da graça, os olhos humanos muitas vezes desiludidos [ou iludidos] com o mundo, magoados pela injustiça que é conseqüência do não converter-se a Deus, petrificam-se e não percebem a vontade de Deus manifesto na graça e nem como Deus se faz presente em suas vidas pela graça, pois acreditam que a graça de Deus deve advir-lhes para tirar-lhes da pobreza material, da dor que aflige a carne, da morte que dilacera, embora a eficácia da graça não seja contrária a isso, a graça é sobretudo um bem espiritual que fortalece o espírito para iniciar o encontro de Deus com o homem já neste mundo, dando um tom sobrenatural ao coração e à razão humana diante de toda a miséria humana, fazendo-o entender e dando-lhe sentido à vida, na medida em que a vida plena do homem somente se realizará na morada de Deus.
Além de tudo isso a graça não é triste é força eficaz do amor, que edifica na dor e na miséria das pessoas no mundo a alegria e a fé de esperar pela graça a promessa de um reino de Deus onde ninguém mais vai sentir dor, chorar e ficar triste. §4. CONCLUSÃO: A graça é bem espiritual que fortalece o homem diante destas misérias e faz descobrir no homem que o amor divino se concretiza nesta vida quando por amor somos capazes de doarmo-nos aos outros para a diminuição da dor alheia, da miséria alheia independentemente se esta doação implique no aumento da nossa; pois já não importa para quem já se encontra vacinado pelo amor divino, manifesto pela graça, sentir qualquer dor neste mundo.
Pois bem a graça é o amor divino revelado por Deus a nós num ato contínuo que nos conserva durante toda a vida no ser, na espera de que num instante desta vida nós descubramos o quanto nos ama e o quanto nos quer. Deus nunca deixa de estar e fazer-se presente na vida do homem, mas pode o homem com o coração encrudelecido não percebê-la jamais. Deus se manterá enviando-lhes graças durante toda a vida e pede, chama e recorda ao homem da importância de seu papel.
Ele não quer perder nenhuma ovelha. Ele se manterá aberto ao retorno do filho pródigo e foi por eles que Deus enviou o seu próprio filho. Deus traçou um projeto de salvação para cada homem e não descansará enquanto em Teu coração não repousar aquele filho pródigo.
Neste projeto de salvação cada homem tem o seu papel no uso de suas faculdades e de sua ação. Deus não quer pela força, porque não nos fez pela força. Ele nos quer pelo amor, porque nos fez por amor; e o amor é livre. S. Agostinho tem razão ao afirmar que o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Deus.
A liberdade humana pode aprisionar-se nos desejos do mundo ou libertar-se transcendendo ao próprio mundo por força e ação da graça que Deus lhe dá. Mas somente abrindo-se a ela poder-se-á compreender o ardor e eficácia da graça no homem.
E porque a eternidade é a presença imutável de Deus diante de todo tempo, bastaria tão-somente um instante de nosso tempo em que houvesse efetiva conversão [abertura à graça], para que Deus nos abundasse de graças e nos justificasse na graça e nos amasse como eleitos.
Deus elege a todos, mas dentre todos alguns não o elegem e isto não basta para a salvação [e aos que O elegem ele os justifica no amor]: numa relação perfeita de amor, ambos devem se amar mutuamente. Deus não nos quer impor o seu amor, quer sim que o descubramos, pois a imposição seria o extermínio da autonomia de nossa liberdade, apanágio este que nos dignifica e nos torna semelhantes a Deus. E estes que não o elegem se fecham à graça aprisionando suas liberdades aos desejos do mundo. Que diremos: que estão predestinados à condenação? Claro que não! Porque como dissemos todos estamos predestinados por uma vocação universal à santidade e bastaria tão-somente um instante de abertura sincera ao amor de Deus que o Pai abriria os braços à espera do filho que há muito se foi e que há muito o esperava com a mesa posta para um grande banquete. Somos predestinados à santidade e nunca à condenação ou à maldade. Ainda que Deus possa prever a condenação de alguém isso não anula ou contraria a sua obra de criação que é obra de amor; porque não é Deus quem condena, mas o homem a si mesmo ao não reconhecer em Deus o seu Abba [Pai].
Deus pode então prever que um homem que se portando muito mal se afasta cada vez mais de sua predestinação à santidade? Claro que Sim! Mas isso em nada diminui o amor divino para a salvação daquela alma, pelo contrário, oferece-lhe tanto mais graças para que aumentem as ocasiões de conversão [Rm 5,20: “Mas onde abundou o pecado superabundou a graça”], embora em última instância a abertura à graça dependerá da liberdade, pois a graça não força a natureza livre, pois bate à porta e entra se a liberdade a deixar entrar. Por isso a graça supõe a natureza e não a destrói.
Somos predestinados à santidade, mas não predeterminados a ela [embora Deus não meça esforços para ver-nos com Ele; e se fôssemos predeterminados à santidade não seríamos condenados; mas também não somos nem predestinados e nem predeterminados à condenação], pois somos livres e no mau uso da liberdade que nos leva a fechar-nos à graça que é o amor de Deus, poderemos ser condenados, enquanto isso significa o oposto à santificação; assim pois com a liberdade se pode confirmar a predestinação à vocação à santidade, enquanto abertura à graça de Deus ou a condenação, enquanto fechamento à graça de Deus.
Os que o elegem recebem mais graças [se a liberdade abre a porta da natureza fica mais fácil entrar o que ora está para entrar], porque sendo Deus amor se doa ainda mais aos que a Ele se abrem, libertando a liberdade da escravidão dos desejos do mundo. Pois bem, a liberdade humana – a que Deus respeita e não muda, porque é autônoma [mas não é absolutamente ilimitada, pois a liberdade humana somente não é livre para eleger outra coisa quando se encontra diante do que melhor elegível não há e diante de quem é autor da natureza] – é o que pode coroar a natureza humana convertendo-a no arbítrio a Deus ou avertendo-a no arbítrio do caminho de Deus. Ainda sobre a liberdade humana há que se dizer que para a santidade a liberdade humana não é independente de Deus; portanto, no estado de sua miséria, mais do que nunca depende da graça de Deus. Portanto, não basta ser livre para lograr a santidade, pois a liberdade por si mesma não se basta e não é suficiente para atingir a este fim, já que estando corrompida a natureza humana, corrompeu-se também o seu ato essencial que é a liberdade. E porque ninguém dá a si mesmo o que não possui, como poderia a liberdade dar-se a si mesma a santidade se não a possui? Ou como poderia ela por si mesma, corrompida e sem auxílio divino pela luz da graça encontrar o que havia perdido na escuridão?
Portanto, a graça pela qual o homem recebe a justificação por meio de Cristo não vale somente para a remissão dos pecados já cometidos, mas também como ajuda para não cometê-los. E esse é a ação da graça sobre aqueles que no mau uso da liberdade estão presos no pecado, pois somente a graça poderá ajudá-los a não mais cometê-los. Por isso a graça é necessária ao homem.
A conseqüência deste arbítrio pode ser: tender a caminho avesso ao de Deus, daí a aversão a Deus, no sentido de que não versa o mesmo caminho de Deus; tender ao caminho que verte a Deus, que leva a Deus, daí conversão a Deus, no sentido de que versa o mesmo caminho de Deus.
E porque Deus conhece [onisciência] o que pode impedir a conversão humana – a quem profundamente ama – [amor], porque conhece as misérias e as deficiências do homem, pode [onipotência] e quer [liberdade] providenciar [providência] bens abundantes [graças] dadas por amor [misericórdia], sem limitar ou predeterminar a liberdade, para que o homem na autonomia de sua vontade possa se abrir livremente à graça e verter-se ao caminho de Deus [conversão] e retorne ao que foi predestinado [predestinação]: à santidade e à sabedoria [salvação].
Portanto, Deus quando cria o homem o pré-destina à santidade e à sabedoria, mas não o predetermina, porque para o bem e para o mal que possa realizar o homem Deus não determina a sua liberdade; por isso ama o que cria e continua criando e conservando com e no amor o que faz e não mede – antropomorficamente falando – nenhum esforço para trazer de volta o Seu tesouro, o homem, que se perde no mundo ao deparar-se com um mundo corrompido pelo pecado, herança da aversão pessoal de Adão, transmitida na origem aos homens. O homem se esquece de Deus, mas Deus nunca do homem. Mas o homem por esquecê-Lo e até mesmo desconhecê-Lo [ignorância] volta-se no uso de seu bem mais precioso – a liberdade – para o arbítrio equivocado das coisas e bens que o mundo lhe oferece, crendo encontrar neles aquela saudade do infinito que sente no seu mais íntimo: saudade de Deus.
Mesmo conhecendo esta deficiência humana, Deus permanecerá com o seu plano e projeto de salvação do homem, estando aberto ao homem e proverá graças suficientes e necessárias para que o homem, mesmo que num único instante de sua existência possa a vir a recordar-se de que há um Deus que é Pai amoroso e que fará tudo para tê-lo de volta, mesmo tendo que respeitar a autonomia da liberdade humana.
Portanto, podemos dizer que Deus porque não predestina ninguém ao mal, ama tudo o que cria e as cria no amor e se há perda do amor por parte do homem é conseqüência do desamor que é o mal [privação do bem] que há no mundo, como conseqüência do pecado e ao que se atrela e se aprisiona a sua liberdade. Independendo de tudo isso Deus ama o homem e espera uma resposta dele.

Fonte: http://www.aquinate.net/p-web/portal-caleidoscopio/atualidades/atualidades-1-edicao/analises/analises-tsunami.htm

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